A Aprovação da Lei de Patentes e a Criação da ANVISA no Brasil: Impactos na Indústria Farmacêutica Nacional
Fabiana C. V. Giusti, PhD; Sara Tolouei, PhD e João B. Calixto, PhD
4/30/202510 min read
Contexto Histórico e Marco Regulador
Com a redemocratização do Brasil e a promulgação da Constituição Federal de 1988, o artigo 196 estabeleceu que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Atualmente, o Brasil destina cerca de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) à saúde por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).
No final do século XX, três marcos legislativos foram decisivos para a indústria farmacêutica nacional:
Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/1996), promulgada em 14 de maio de 1996, alinhando o Brasil aos padrões internacionais de proteção à propriedade intelectual estabelecidos pelo Acordo TRIPS da OMC.
Lei dos Medicamentos Genéricos (Lei nº 9.787/1999), que permitiu o registro de medicamentos cujas patentes haviam expirado, aprovada em 10 de fevereiro de 1999.
Criação da ANVISA (Lei nº 9.782/1999), de 26 de janeiro de 1999, para regulamentar e fiscalizar o setor.
Essas iniciativas transformaram profundamente o setor farmacêutico nacional.
A Aprovação da Lei de Patentes e seu Impacto na Indústria Nacional
No final do século passado, após intensos debates e forte pressão de empresas farmacêuticas transnacionais, especialmente americanas, o congresso brasileiro aprovou a Lei de Propriedade Industrial, conhecida como Lei de Patentes (Lei nº 9.279/1996), que foi promulgada em 14 de maio de 1996. Essa aprovação representou uma transformação significativa no cenário da inovação e desenvolvimento tecnológico no Brasil. Com essa aprovação, o Brasil alinhou-se aos padrões internacionais de proteção à propriedade intelectual, especialmente os definidos pelo Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS), da Organização Mundial do Comércio (OMC). A Lei de Patentes introduziu mudanças significativas, como a concessão de patentes para produtos farmacêuticos e processos de fabricação, algo que antes se restringia apenas a métodos de fabricação. A legislação tinha como objetivo incentivar investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I) no Brasil. Contudo, os resultados não alcançaram as expectativas iniciais.
Os principais desafios foram:
Dependência Tecnológica: grande parte das matérias-primas e tecnologias continuou sendo importada;
Baixos Investimentos em PD&I: A falta de experiência em inovação, o suporte limitado de investimentos e a ausência de políticas públicas de longa duração para apoiar a PD&I no setor farmacêutico por parte do governo dificultaram avanços significativos no setor;
Preços Elevados: A exclusividade conferida pelas patentes aumentou os preços iniciais de medicamentos, restringindo o acesso a tratamentos inovadores.
Um dos maiores desafios impostos pela Lei de Patentes no Brasil foi a necessidade de equilibrar os direitos de propriedade intelectual com a necessidade de promover o acesso universal à saúde, conforme previsto pela Constituição Federal. Isso se tornou especialmente complexo no contexto de doenças crônicas e negligenciadas, como tuberculose, doenças de Chagas e outras doenças endêmicas comuns aos países em desenvolvimento, que frequentemente despertam pouco ou nenhum interesse comercial por parte das grandes farmacêuticas multinacional. No entanto, a Lei de Patentes brasileira incluiu mecanismos que permitem a concessão de licenças compulsórias em situações de emergência de saúde pública, como ocorreu com medicamentos para HIV/AIDS no início dos anos 2000. Essa medida se tornou um exemplo de como o Brasil conseguiu conciliar interesses comerciais e a saúde pública.
Analisando retrospectivamente, observa-se que a Lei de Patentes aprovada pelo Congresso Nacional trouxe desafios significativos tanto para a indústria farmacêutica nacional quanto para o governo federal no que diz respeito ao acesso a medicamentos essenciais fornecidos pelo SUS. Embora a intenção inicial fosse incentivar investimentos em PD&I pelas empresas farmacêuticas nacionais e atrair investimentos internacionais para o setor, essas previsões não se concretizaram. Por outro lado, a situação evidenciou a necessidade de políticas de incentivos estratégicas e de longo prazo, por parte do governo, para reduzir a demasiada dependência de importação de medicamentos, vacinas e Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs), garantindo o acesso da população a esses produtos. O equilíbrio entre inovação tecnológica e a acessibilidade continua sendo um tema central no debate sobre propriedade intelectual no Brasil, especialmente em um setor tão crucial, que pode ser considerado uma questão segurança nacional, como é o caso do setor farmacêutico.
A Criação da ANVISA e Seu Reflexo no Avanço na Indústria Farmacêutica
Em 1976, com a reestruturação do Ministério da Saúde, foi criada a Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária, a partir da junção do Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina e Farmácia e do Serviço de Saúde dos Portos. Segundo o Decreto n. 79.056, de 30 de dezembro de 1976, em seu Art. 13º, caberia à nova Secretaria “promover ou elaborar, controlar a aplicação e fiscalizar o cumprimento de normas e padrões de interesse sanitário relativos a portos, aeroportos, fronteiras, produtos médico-farmacêuticos, bebidas, alimentos e outros produtos ou bens, respeitadas as legislações pertinentes, bem como efetuar o controle sanitário das condições do exercício profissional relacionado com a saúde”.
Em meados dos anos 1990, o então Secretário Nacional de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, professor Elisaldo de Araújo Carlini, propôs ao então ministro da Saúde Adib Jatene a criação de uma agência reguladora autônoma ligada ao Ministério da Saúde semelhante à Food and Drug Administration (FDA), comprovadamente uma das mais relevantes e respeitadas agências reguladora em todo o mundo. Nesse período, uma comissão de especialistas representando várias sociedades médicas e científicas denominada Comissão de Assessoramento em Medicamentos e Correlatos (CRAME), cujo coordenador por acaso era eu (J.B.C), assessorava a Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde na área de registro de medicamentos. Com a aprovação da proposta de criar uma agência reguladora autônoma no Brasil pelos membros da CRAME e posterior aprovação do Ministro Adib Jatene, foi enviada uma comissão de especialistas para visitar a FDA nos Estados Unidos e discutir seus estatutos e estrutura física e jurídica, visando criar no Brasil uma agência regulatória semelhante à FDA.
A criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) ocorreu em 26 de janeiro de 1999 e representou outro marco significativo para a regulamentação sanitária no Brasil e também para o avanço do setor farmacêutico nacional, notadamente dos medicamentos genéricos. Instituída pela Lei nº 9.782, a ANVISA foi concebida, a exemplo da FDA, como uma entidade inicialmente vinculada ao Ministério da Saúde, mas com autonomia administrativa, financeira e de gestão, para responder às crescentes demandas de saúde pública e segurança sanitária no país. Sua missão inclui a proteção da saúde da população por meio da regulamentação e fiscalização de produtos e serviços que envolvem riscos à saúde, incluindo medicamentos, alimentos, cosméticos e produtos para a saúde.
Papel da ANVISA na introdução dos medicamentos genéricos
Uma das contribuições mais relevantes da ANVISA foi sua atuação decisiva na consolidação do mercado de medicamentos genéricos no Brasil. A aprovação da Lei nº 9.787, de 1999, estabeleceu as bases para a política nacional de medicamentos genéricos. Essa legislação definiu os medicamentos genéricos como equivalentes terapêuticos dos medicamentos de referência, mas com preços mais acessíveis, já que não requerem investimentos com pesquisa e desenvolvimento de novas moléculas. Sob a liderança de seu primeiro diretor-presidente, Dr. Gonçalo Vecina, a ANVISA foi encarregada de regulamentar e certificar esses medicamentos, garantindo à população a qualidade, segurança e eficácia dos produtos.
Para viabilizar essa iniciativa, a ANVISA implementou rigorosos critérios para o registro de medicamentos genéricos, incluindo a exigência de estudos de bioequivalência e biodisponibilidade. Esses estudos são fundamentais para comprovar que o medicamento genérico possui o mesmo princípio ativo, dose, forma farmacêutica e eficácia terapêutica que o produto de referência. Além disso, a agência estabeleceu normas específicas para rotulagem e embalagem, assegurando transparência e confiança ao consumidor.
Impacto da criação da ANVISA na saúde pública e no mercado farmacêutico
A introdução dos medicamentos genéricos, respaldada pelo suporte regulatório da ANVISA, causou impacto profundo na saúde pública brasileira. Esses medicamentos ampliaram significativamente o acesso da população a tratamentos essenciais, especialmente para doenças crônicas, como hipertensão e diabetes, ao mesmo tempo em que reduziram os custos tanto para os pacientes e para o SUS. Estima-se que, desde sua implementação, os genéricos tenham gerado uma economia de bilhões de reais para o país.
No mercado farmacêutico, a ANVISA também desempenhou papel crucial ao promover a competitividade e reduzir a concentração de mercado entre grandes laboratórios. Essa dinâmica contribuiu, de certa forma, para incentivar a inovação, a melhoria contínua na produção de medicamentos e o fortalecimento da indústria farmacêutica nacional.
Papel da ANVISA no avanço da inovação tecnológica e no desenvolvimento de medicamentos e vacinas inovadores no Brasil
Claramente, a ANVISA não teve o mesmo sucesso no apoio à inovação radical e no desenvolvimento de novos medicamentos e vacinas no Brasil comparado ao seu papel relevante na fiscalização e lançamento dos medicamentos genéricos. A ANVISA é uma agência reguladora muito jovem, atualmente com apenas 25 anos, quando comparada com a centenária FDA que lhe serviu como modelo. Além disso, como será discutido mais adiante neste artigo, é urgente que a ANVISA amplie seu quadro de profissionais especializados, com formação sólida na área regulatória, e invista no treinamento continuo de seus técnicos. Idealmente, esses treinamentos deveriam incluir estágios de longa duração no exterior, realizados em parcerias com as principais agências reguladoras internacionais e instituições acadêmicas de referência.
Dado que a inovação tecnológica na indústria farmacêutica nacional não evoluiu como desejado no desenvolvimento de medicamentos inovadores, a ANVISA também não teve a oportunidade de capacitar adequadamente seu corpo técnico no desenho e análise de protocolos pré-clínicos e clínicos, bem como na avaliação de dossiês complexos para o registro de medicamentos e vacinas inovadores desenvolvidos internamente.
A necessidade de criar na ANVISA um sistema de Investigational New Drug Application (IND) semelhante ao existente na FDA.
Na Newsletter de dezembro de 2024 (ver https://www.cienp.org/a-criacao-da-food-and-drug-administration-fda-e-seus-reflexos-no-desenvolvimento-da-industria-farmaceutica), discutimos detalhadamente a criação pela FDA e ainda na década de 1960 a criação do IND, e de seu impacto no progresso da inovação tecnológica e no desenvolvimento de novos medicamentos pela indústria farmacêutica americana desde então.
O objetivo central do IND é proteger os voluntários humanos envolvidos nos ensaios clínicos, estabelecendo um processo rigoroso de avaliação. Além disso, o IND exige que as indústrias farmacêuticas comprovem à FDA que o candidato a medicamento foi testado adequadamente em estudos pré-clínicos e que não apresenta riscos imediatos para a saúde humana; e que além de ser seguro, o candidato a medicamento também é eficaz para tratar a condição para a qual estava sendo desenvolvido. Isso ajuda a evitar que substâncias sem comprovação de benefícios (ou com relação custo-benefício desfavorável) sejam comercializadas. O IND também permite um acompanhamento mais eficaz do progresso dos estudos clínicos, com dados sendo reportados regularmente à FDA, o que ajuda a identificar rapidamente qualquer problema potencial. O processo também visa aumentar a transparência na pesquisa clínica, exigindo a submissão de informações detalhadas sobre os protocolos dos testes, composição do medicamento, resultados dos testes pré-clínicos e outras informações relevantes.
Entendemos também que a ANVISA necessita, além de contratar novos técnicos especialistas em aspectos regulatórios, é necessário treinar seu corpo técnico em pesquisa pré-clínica translacional e em pesquisa clínica preferencialmente em parceria com agências reguladoras internacionais. Como o treinamento e contratação de novos técnicos experientes são processos que demandam tempo, uma estratégia seria contratar consultores com comprovada experiência no mercado internacional na área de desenvolvimento e registro de medicamentos e estabelecer com prioridade um sistema semelhante ao IND existente na FDA.
Considerações finais
A introdução na ANVISA de um sistema semelhante ao IND empregado há várias décadas pela FDA poderia representar um marco regulatório significativo para impulsionar a inovação tecnológica no desenvolvimento de novos medicamentos no Brasil. Essa iniciativa traria benefícios substanciais para a indústria farmacêutica nacional, startups e academia, incluindo: i) maior agilidade nas discussões de protocolos pré-clínicos e clínicos e outros durante as etapas iniciais de desenvolvimento, fator que certamente contribuiria para reduzir as exigências pelos técnicos da ANVISA nos processos de análise desses documentos; ii) permitiria maior celeridade e transparência nas análises dos dossiês pré-clínicos e clínicos, podendo reduzir substancialmente os tempos de análise e aprovação das propostas, sem comprometer o rigor técnico; iii) eliminaria dúvidas frequentes das indústrias, pesquisadores e, principalmente das empresas start ups na interpretação das normas vigentes na ANVISA necessárias para atender as regulações nos testes pré-clínicos e clínicos; iv) contribuiria para redução do tempo e eventualmente dos custos necessários para desenvolver e aprovar os dossiês pré-clínicos e clínicos e o próprio registro do produto e v) o estabelecimento do IND na ANVISA poderia além de fomentar a inovação radical em medicamentos e vacinas, abriria caminho para a experimentação com novas terapias.
Referências bibliográficas consultadas
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9279.htm
https://www.vilage.com.br/blog/lei-de-propriedade-industrial-o-que-e-direitos-e-obrigacoes/
Cabello AF e Póvoa LMC . Análise econômica da primeira Lei de Patentes brasileira. Estud. Econ. 46 (4) 2016 https://doi.org/10.1590/0101-416146484aclp
https://www.gov.br/pt-br/orgaos/agencia-nacional-de-vigilancia-sanitaria


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