A criação da Food and Drug Administration (FDA) e seus reflexos no desenvolvimento da indústria farmacêutica

Da regulamentação local ao papel de liderança mundial, a história da FDA reflete como a ciência e a legislação se uniram para proteger a saúde pública

BLOG CIENP

João B. Calixto, PhD.

12/12/202410 min read

A Food and Drug Administration (FDA) foi criada em 1906, quando o Pure Food and Drug Act foi aprovado pelo Congresso dos Estados Unidos. Antes dessa data, o mercado de alimentos e medicamentos estava desregulamentado, o que facilitava a venda de produtos adulterados e/ou falsificados. Em 1927, o governo dos Estados Unidos reorganizou a FDA (anteriormente conhecida como Bureau of Chemistry) e em 1930 essa administração foi renomeada na forma como permanece até hoje. Durante as décadas de 1930 e 1940, a FDA passou por uma série de mudanças e atualizações para reforçar suas responsabilidades e ampliar suas funções. Um dos marcos mais importantes foi o Federal Food, Drug, and Cosmetic Act de 1938, que foi aprovado após o trágico incidente de 1937 envolvendo um medicamento chamado elixir sulfanilamida. O elixir, que continha 72% de dietilenoglicol (substância tóxica hoje utilizada como anticongelante), causou a morte de mais de 100 pessoas, muitas delas crianças. Esse desastre levou à criação de um sistema mais rigoroso de avaliação e aprovação de medicamentos. O Federal Food, Drug, and Cosmetic Act deu à FDA a autoridade para revisar novos medicamentos antes de sua comercialização, e também ampliou as regulamentações para cosméticos e dispositivos médicos. A partir desse momento, a FDA se consolidou como a principal agência de regulação de produtos de consumo nos Estados Unidos e do mundo.

Nas primeiras décadas do século XX, surgem ainda, embora de forma não-planejada (serendipitous observations), descobertas importantes de alguns medicamentos que marcaram a história da humanidade. Entre outros, pode ser mencionado a descoberta da sulfonamida, e mais tarde da penicilina por Alexander Fleming em 1928. A produção em escala industrial da penicilina pela Pfizer foi uma das maiores contribuições da indústria farmacêutica para a terapêutica durante a segunda guerra mundial, evitando assim a morte de milhares de pessoas. Outro grande marco para o surgimento da indústria farmacêutica moderna foi o entendimento de que o sucesso nesta área dependia de um trabalho colaborativo entre vários profissionais, incluindo biólogos, médicos, farmacólogos, químicos medicinais, estatísticos, etc. No intervalo entre a primeira e a segunda guerra mundial esse conceito foi estabelecido, surgindo a necessidade de realizar estudos pré-clínicos em animais para analisar a eficácia e a segurança de um novo composto. O acidente com o uso do elixir sulfonilamida contendo dietilenoglicol levou Ceiling e Cannon a sugerir os princípios básicos para a realização dos ensaios clínicos para novos medicamentos, o que convergiu com o estabelecimento do Código de Nuremberg que foi publicado em resposta aos horrores causados pelos nazistas aos Judeus durante a segunda guerra mundial, válido até hoje. Estabeleceu-se a partir daí o conceito sobre a utilização de voluntários para a realização dos estudos clínicos e, por consequência, a necessidade de se criar os comitês de éticas em pesquisa clínica. Ficou estabelecido que antes de ser administrada ao ser humano, qualquer nova droga deveria apresentar as seguintes características: i) composição química, método de preparação e o grau de pureza bem estabelecidos; ii) testes de toxicidade aguda e prolongada por doses repetidas (segurança) em duas espécies animais; iii) realização de completa da análise histopatológica em diversos órgãos de animais, especialmente nos rins e fígado; iv) conhecimentos acerca da sua absorção, excreção, concentração nos tecidos; v) possível interação com outras drogas e alimentos, etc.

Na década de 1960, um marco importante na regulação de novos medicamentos foi a criação do Investigational New Drug Application (IND) pela FDA. Esse novo procedimento foi estabelecido em resposta a várias necessidades emergentes para garantir a segurança e a eficácia dos medicamentos antes da realização de estudos clínicos e de sua comercialização em larga escala. A introdução do IND trouxe significativas mudanças na maneira como as indústrias farmacêuticas conduziam seus processos de desenvolvimento e também ajudou a reforçar a confiança do público nos medicamentos disponíveis no mercado. A criação do IND foi impulsionada por um contexto de crescente preocupação com a segurança dos medicamentos e suas possíveis consequências para a saúde pública. Durante as décadas de 1950 e 1960, alguns escândalos envolvendo medicamentos geraram uma crise de confiança. O caso mais notório foi o da talidomida, um medicamento utilizado como sedativo e prescrito para grávidas com o objetivo de combater náuseas. A talidomida causou defeitos congênitos em mais de mais de 10.000 recém-nascidos em vários países, inclusive nos Estados Unidos, onde o medicamento não havia sido aprovado, mas sua utilização estava prestes a ser autorizada. Esse incidente evidenciou a necessidade urgente de uma regulamentação mais rigorosa para garantir a segurança de novos medicamentos. Além disso, a medicina estava avançando rapidamente, com o surgimento de novas terapias, como os antibióticos e outras terapias farmacológicas. Assim, a indústria farmacêutica precisava de uma maneira mais estruturada e formalizada para testar e introduzir medicamentos, sem comprometer a saúde dos pacientes. Como resposta a essa situação, o Food, Drug, and Cosmetic Act de 1938, que já tinha sido a base da regulamentação de novos medicamentos, foi atualizado para incluir a exigência de que os fabricantes de medicamentos submetessem o IND à FDA antes de iniciar qualquer teste clínico envolvendo seres humanos.

Entendendo o IND

O objetivo central do IND é proteger os voluntários humanos envolvidos nos ensaios clínicos, estabelecendo um processo rigoroso de avaliação. Além disso, o IND exige que as indústrias farmacêuticas comprovem à FDA que o candidato a medicamento foi testado adequadamente em estudos pré-clínicos e que não apresenta riscos imediatos para a saúde humana; e que além de ser seguro, o candidato a medicamento também é eficaz para tratar a condição para a qual estava sendo desenvolvido. Isso ajuda a evitar que substâncias sem comprovação de benefícios (ou com relação custo-benefício desfavorável) sejam comercializadas. O IND também permite um acompanhamento mais eficaz do progresso dos estudos clínicos, com dados sendo reportados à FDA regularmente, o que ajuda a identificar rapidamente qualquer problema potencial. O processo também visa aumentar a transparência na pesquisa clínica, exigindo a submissão de informações detalhadas sobre os protocolos dos testes, composição do medicamento, resultados dos testes pré-clínicos e outras informações relevantes.

O funcionamento da IND é estruturado em várias etapas-chave, e sua implementação teve um grande impacto na organização dos ensaios clínicos. Quando uma empresa farmacêutica deseja testar um novo medicamento em seres humanos, ela deve submeter um pedido formal para a FDA. Esse pedido deve incluir dados detalhados: i) os fabricantes devem fornecer à FDA dados de testes laboratoriais e de experimentação animal para demonstrar que o medicamento não apresenta riscos imediatos; ii) a empresa deve apresentar um plano detalhado dos ensaios clínicos, incluindo o número de voluntários, critérios de inclusão e exclusão, métodos de monitoramento, e o objetivo principal do estudo (por exemplo, determinar a dosagem correta ou avaliar a eficácia); iii) a submissão deve fornecer informações detalhadas sobre os ingredientes ativos, os métodos de produção e o controle de qualidade do medicamento, garantindo que ele possa ser fabricado de maneira consistente e segura; iv) deve ser apresentado como os efeitos colaterais serão monitorados e registrados durante os ensaios clínicos.

Após a submissão do IND, a FDA tem um período de revisão de 30 dias para avaliar os dados apresentados. Durante esse período, a FDA pode aprovar o início dos ensaios clínicos, solicitar modificações no protocolo ou até mesmo negar a solicitação, caso identifique riscos significativos à segurança dos participantes. São exigidos múltiplos estudos não-clínicos sobre a substância (in vitro e in vivo), principalmente dados relacionados à segurança (toxicologia aguda e/ou de doses repetidas em duas espécies animais, sendo uma espécie de animal roedor e outra não-roedora, e estudos sobre genotoxicidade), farmacodinâmica, farmacologia de segurança, absorção, metabolismo, farmacocinética, toxicocinética, mecanismo de ação, entre outros. A relação dos testes não-clínicos necessários para a submissão do IND pode variar com o produto em questão e também com a duração dos estudos clínicos. Além disso, é necessário comprovar que os estudos não-clínicos foram realizados de acordo com os Princípios das Boas Práticas de Laboratório (BPL). Outras exigências incluem informações químicas sobre a substância, como identidade do produto, processo de síntese, lote, conformidade com as Boas Práticas de Fabricação (BPF), peso molecular, grau de pureza, solubilidade, data de fabricação, validade, estabilidade, eventual presença de impurezas, informação sobre as condições para transporte da substância (sensibilidade à luz, temperatura, etc.), proposta de formulação para o produto, entre outros. Além disso é exigida a submissão ao FDA dos protocolos clínicos detalhados para os experimentos das fases I, II e III, bem como os demais estudos não-clínicos a serem realizados durante a fase de pesquisa em humanos.

Os impactos gerados

A implementação do IND teve um impacto profundo no processo de desenvolvimento de novos medicamentos, com várias implicações para as indústrias farmacêuticas, como:

  • mais rigor: a exigência de estudos pré-clínicos e um protocolo rigoroso de ensaios clínicos obrigou as empresas a se profissionalizarem ainda mais no processo de desenvolvimento de medicamentos. Isso resultou em um aumento da qualidade dos estudos clínicos e na criação de um sistema mais robusto de testes;

  • mais transparência e controle: A necessidade de fornecer dados detalhados e documentação à FDA aumentou a transparência no processo de desenvolvimento de medicamentos. As indústrias farmacêuticas tiveram que adotar práticas mais meticulosas de documentação, controle de qualidade e vigilância de segurança;

  • celeridade e inovação: embora o processo de submissão do IND tenha tornado o desenvolvimento de novos medicamentos como um todo mais demorado e oneroso, também contribuiu para a aceleração do processo de aprovação, à medida em que as indústrias se adaptaram e tiveram a oportunidade de discutir com os técnicos da FDA questões relativas aos estudos pré-clínicos e clínicos e aperfeiçoaram seus métodos. Além disso, a criação do IND ajudou a incentivar a inovação ao permitir a experimentação com novas substâncias e terapias;

  • desafios financeiros: a implementação da IND trouxe desafios financeiros e logísticos. Em função das exigências, o processo de desenvolvimento de medicamentos passou a ser mais caro e demorado, exigindo mais investimentos em pesquisa e cumprimento de regulamentos rigorosos. Isso levou ao fortalecimento de grandes empresas farmacêuticas, enquanto as pequenas empresas tiveram dificuldades para competir devido ao alto custo dos ensaios clínicos.

Em suma, a introdução do IND pela FDA na década de 1960 foi um passo crucial na proteção da saúde pública e no fortalecimento da regulamentação do desenvolvimento de novos medicamentos. Ela estabeleceu um sistema que exige a comprovação de segurança e eficácia antes que um medicamento possa ser comercializado, refletindo o compromisso da FDA com a saúde dos consumidores. Embora tenha trazido desafios significativos para as indústrias farmacêuticas, o processo do IND também facilitou inovações importantes no campo da medicina.

Avanços recentes

Visando estimular o desenvolvimento de medicamentos para necessidades clínicas não-atendidas, a FDA criou nas últimas décadas alguns mecanismos que são utilizados em casos importantes específicos e servem para acelerar a análise e/ou aprovação dos dados:

  • fast track: acelera a revisão de dados de medicamentos que tratam doenças graves e preenchem uma necessidade médica não atendida;

  • terapia inovadora (breakthrough therapy): acelera o desenvolvimento e a revisão de medicamentos que podem demonstrar uma melhoria substancial em relação à terapia disponível;

  • aprovação acelerada: acelera a aprovação de medicamentos que tratam de uma condição grave ou preenchem uma necessidade médica não atendida, com base em um substituto ou um desfecho clínico intermediário;

  • revisão prioritária: acelera a avaliação do FDA de um medicamento que, se aprovado, seria uma melhoria significativa na segurança ou eficácia do tratamento, diagnóstico ou prevenção de doenças graves.

Com o surgimento e o crescente uso de medicamentos biológicos, produtos de saúde digital e terapias genéticas, entre outras, a FDA teve que adaptar suas políticas para garantir a segurança e eficácia desses novos produtos. Em 2018, o FDA criou um centro especializado para supervisionar a regulação de medicamentos e dispositivos digitais, incluindo aplicativos de saúde e dispositivos vestíveis. Além disso, a FDA tem desempenhado um papel importante na regulação de substâncias relacionadas ao uso recreativo como os derivados da Cannabis. Embora o uso de maconha ainda seja ilegal sob a lei federal dos EUA, a FDA está ativamente envolvida na supervisão de medicamentos derivados, como o canabidiol.

Para além dos medicamentos e alimentos

Em 1976, a regulação de dispositivos médicos (chamada Medical Device Amendments to the FD&C Act) foi criada para dar à FDA o poder de regular também os dispositivos médicos, como marcapassos e implantes. Esse período também marcou o início de um foco mais forte na educação do consumidor, e a FDA passou a adotar campanhas para informar o público sobre os riscos de certos produtos, como cigarros e alimentos com ingredientes artificiais. A partir da década de 1990, a FDA passou a enfrentar novos desafios com o crescimento da indústria farmacêutica, dos dispositivos médicos e de tecnologias emergentes, como os alimentos geneticamente modificados. Assim, em 1997, o Food and Drug Administration Modernization Act (FDAMA) foi aprovado, trazendo várias mudanças, incluindo a possibilidade de aumentar o uso de medicamentos genéricos e a melhoria do processo de aprovação de medicamentos. A FDA também passou a utilizar novas tecnologias, como o rastreamento eletrônico para melhorar a vigilância e controle de medicamentos. Nos anos seguintes, a FDA enfrentou questões relacionadas à globalização do comércio de alimentos e medicamentos, incluindo o aumento do número de importações e a crescente complexidade dos produtos. Isso levou a mais regulamentações para garantir a segurança desses produtos em uma economia global.

Nos seus 122 anos de existência, a FDA evoluiu de uma pequena agência com foco limitado na regulamentação de alimentos e medicamentos para uma entidade complexa e multifacetada e reconhecida mundialmente pela sua excelência na aprovação e regulamentação de uma ampla gama de produtos. A cada década, ela se adaptou às mudanças tecnológicas, sociais e científicas, sempre com a missão de proteger a saúde pública. Nos dias atuais, a FDA continua a ser um pilar fundamental na regulação e fiscalização dos produtos consumidos pela população americana, desempenhando um papel essencial na promoção da saúde e bem-estar.

Principais referências

Suzanne White Junod. FDA and Clinical Drug Trials: A Short History. Disponível em: https://www.fda.gov/media/110437/download

Food and Drug Administration (FDA). Guidance for Industry - Preclinical Assessment of Investigational Cellular and Gene Therapy Products. Disponível em: https://www.fda.gov/media/87564/download

Geiling, E. M. K. & Cannon, P. R. Pathologic effects of elixir of sulphanilamide (diethylene glycol) poisoning. JAMA 111, 919–926 (1938). https://jamanetwork.com/journals/jama/article-abstract/282251

Greaves P; Williams A. e Eve M. First dose of potential new drug medicines to human: how animals help. Nature Review Drug Discovery 3: 227, 2004. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/15031736/