A Aprovação da Lei de Patentes, dos Medicamentos Genéricos e a Criação da Anvisa: Impactos na Indústria Farmacêutica Nacional
Caminhos para o Brasil se tornar líder em inovação no setor farmacêutico
BLOG CIENP
João B. Calixto
1/24/202521 min read


Contexto Histórico e Marco Regulador
Com a redemocratização do Brasil e a promulgação da Constituição Federal de 1988, o artigo 196 estabeleceu que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Atualmente, o Brasil destina cerca de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) à saúde por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).
No final do século XX, três marcos legislativos foram decisivos para a indústria farmacêutica nacional:
Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/1996), promulgada em 14 de maio de 1996, alinhando o Brasil aos padrões internacionais de proteção à propriedade intelectual estabelecidos pelo Acordo TRIPS da OMC.
Lei dos Medicamentos Genéricos (Lei nº 9.787/1999), que permitiu o registro de medicamentos cujas patentes haviam expirado, aprovada em 10 de fevereiro de 1999.
Criação da ANVISA (Lei nº 9.782/1999), de 26 de janeiro de 1999, para regulamentar e fiscalizar o setor.
Essas iniciativas transformaram profundamente o setor farmacêutico nacional.
A Aprovação da Lei de Patentes e seu Impacto na Indústria Nacional
No final do século passado, após intensos debates e forte pressão de empresas farmacêuticas transnacionais, especialmente americanas, o congresso brasileiro aprovou a Lei de Propriedade Industrial, conhecida como Lei de Patentes (Lei nº 9.279/1996), que foi promulgada em 14 de maio de 1996. Essa aprovação representou uma transformação significativa no cenário da inovação e desenvolvimento tecnológico no Brasil. Com essa aprovação, o Brasil alinhou-se aos padrões internacionais de proteção à propriedade intelectual, especialmente os definidos pelo Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS), da Organização Mundial do Comércio (OMC). A Lei de Patentes introduziu mudanças significativas, como a concessão de patentes para produtos farmacêuticos e processos de fabricação, algo que antes se restringia apenas a métodos de fabricação. A legislação tinha como objetivo incentivar investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I) no Brasil. Contudo, os resultados não alcançaram as expectativas iniciais.
Os principais desafios foram:
Dependência Tecnológica: grande parte das matérias-primas e tecnologias continuou sendo importada;
Baixos Investimentos em PD&I: A falta de experiência em inovação, o suporte limitado de investimentos e a ausência de políticas públicas de longa duração para apoiar a PD&I no setor farmacêutico por parte do governo dificultaram avanços significativos no setor;
Preços Elevados: A exclusividade conferida pelas patentes aumentou os preços iniciais de medicamentos, restringindo o acesso a tratamentos inovadores.
Um dos maiores desafios impostos pela Lei de Patentes no Brasil foi a necessidade de equilibrar os direitos de propriedade intelectual com a necessidade de promover o acesso universal à saúde, conforme previsto pela Constituição Federal. Isso se tornou especialmente complexo no contexto de doenças crônicas e negligenciadas, como tuberculose, doenças de Chagas e outras doenças endêmicas comuns aos países em desenvolvimento, que frequentemente despertam pouco ou nenhum interesse comercial por parte das grandes farmacêuticas multinacional. No entanto, a Lei de Patentes brasileira incluiu mecanismos que permitem a concessão de licenças compulsórias em situações de emergência de saúde pública, como ocorreu com medicamentos para HIV/AIDS no início dos anos 2000. Essa medida se tornou um exemplo de como o Brasil conseguiu conciliar interesses comerciais e a saúde pública.
Analisando retrospectivamente, observa-se que a Lei de Patentes aprovada pelo Congresso Nacional trouxe desafios significativos tanto para a indústria farmacêutica nacional quanto para o governo federal no que diz respeito ao acesso a medicamentos essenciais fornecidos pelo SUS. Embora a intenção inicial fosse incentivar investimentos em PD&I pelas empresas farmacêuticas nacionais e atrair investimentos internacionais para o setor, essas previsões não se concretizaram. Por outro lado, a situação evidenciou a necessidade de políticas de incentivos estratégicas e de longo prazo, por parte do governo, para reduzir a nossa demasiada dependência de importação de medicamentos, vacinas e Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs), garantindo o acesso da população a esses produtos. O equilíbrio entre inovação tecnológica e a acessibilidade continua sendo um tema central no debate sobre propriedade intelectual no Brasil, especialmente em um setor tão crucial, que pode ser considerado uma questão segurança nacional, como é o caso do setor farmacêutico.
A Aprovação dos Medicamentos Genéricos no Brasil e sua Importância para a Indústria Farmacêutica Nacional
A principal finalidade da lei que regulamentou o registro de medicamentos genéricos no Brasil foi ampliar o acesso da população a medicamentos seguros e eficazes, ao mesmo tempo em que fortalecia a competitividade da indústria farmacêutica nacional.
Os medicamentos genéricos foram aprovados nos Estados Unidos em 1984 pelo Hatch-Waxman Act, com o objetivo de reduzir os custos para os consumidores e ampliar o acesso a tratamentos médicos. Inspirado nesse modelo, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 9.787 em 10 de fevereiro de 1999, sob a relatoria do deputado Eduardo Jorge. A regulamentação e fiscalização dos medicamentos genéricos ficaram a cargo da ANVISA, criada no mesmo ano. A agência estabeleceu critérios rigorosos, incluindo estudos de bioequivalência e biodisponibilidade, para garantir que os medicamentos genéricos tivessem o mesmo efeito terapêutico dos medicamentos de referência.
Impacto no Mercado Nacional e na Indústria Farmacêutica Brasileira
A introdução dos medicamentos genéricos no mercado brasileiro trouxe transformações significativas ao mercado farmacêutico nacional. Até o final dos anos 1990, o setor era amplamente dominado por empresas multinacionais que controlavam a comercialização de medicamentos de referência com preços elevados. A chegada dos genéricos estimulou as empresas nacionais a expandirem suas capacidades produtivas, investirem em tecnologia e modernizarem suas fábricas para atender aos padrões exigidos para competir nesse segmento.
Como resultado, laboratórios brasileiros passaram a desempenhar um papel central no mercado interno e a conquistar espaço no mercado internacional. A especialização na produção de medicamentos genéricos não só aumentou a relevância das empresas nacionais, mas também ajudou a reduzir os gastos do SUS e teve um impacto, ainda que modesto, na balança comercial do setor farmacêutico.
Benefícios para a Saúde Pública e para os Consumidores
Os medicamentos genéricos trouxeram benefícios expressivos para a saúde pública, especialmente ao democratizar o acesso a tratamentos para doenças crônicas como hipertensão, diabetes e doenças cardiovasculares. O impacto foi notável no SUS, que pôde adquirir medicamentos a preços mais baixos, otimizando o uso de recursos públicos. A concorrência gerada pelos medicamentos genéricos também resultou na redução dos preços dos medicamentos de referência, ampliando o alcance dos tratamentos. De acordo com estatísticas da CMED/2022, o Brasil contava com 88 fabricantes de genéricos, responsáveis por mais de 2.553 registros de medicamentos e 4.576 apresentações comerciais. Em 2023, o setor gerou um faturamento próximo a R$ 17,9 bilhões, representando cerca de 65% do mercado farmacêutico nacional. Todas as dez maiores farmacêuticas no Brasil mantêm linhas de produção de genéricos, consolidando sua importância no setor.
Desafios e Perspectivas Futuras
Apesar dos avanços, a indústria farmacêutica brasileira ainda enfrenta desafios importantes. A pandemia da COVID-19 mostrou a extrema dependência do Brasil na importação de IFAs, reforçando a necessidade de uma atuação conjunta entre a indústria nacional, o governo federal e a academia para aumentar substancialmente o investimento em pesquisa e desenvolvimento. Esse esforço permitiria ao país produzir internamente medicamentos inovadores, reduzindo a dependência de medicamentos acabados e IFAs importados, o que teria impactos positivos na sustentabilidade do SUS e na balança comercial do Brasil.
Uma outra perspectiva promissora para o setor é o mercado de biossimilares, que segue uma lógica similar aos genéricos, mas é voltado para medicamentos biológicos cujas patentes expiraram. Contudo, o desenvolvimento de biossimilares exige o domínio de tecnologias complexas e investimentos consideravelmente maiores do que os necessários para o lançamento de medicamentos genéricos.
Considerações Finais
Apesar dos avanços mencionados acima, a indústria farmacêutica nacional enfrenta desafios contínuos, que se tornaram críticos durante a pandemia da COVID-19, como a grande dependência de IFAs importados e a premente necessidade de aumentar os investimentos em PD&I. Para avançar e consolidar o setor farmacêutico, é essencial que políticas públicas de estado e de longa duração sejam estabelecidas com urgência para incentivar a inovação tecnológica local e permitir que o Brasil produza localmente tanto IFAs como medicamentos inovadores, importantíssimos para garantir o acesso da população e também para a sustentabilidade do SUS a longo prazo. A aprovação dos medicamentos genéricos foi, sem dúvida, uma das políticas públicas mais bem-sucedidas do país, ampliando o acesso a medicamentos e fortalecendo a indústria farmacêutica nacional. Contudo, essa política também levou a uma certa acomodação por parte de algumas empresas, que, apesar do apoio do BNDES e FINEP, não avançaram significativamente em inovação tecnológica nas últimas três décadas. Enquanto outros países, como a Coreia, China e Índia, realizaram grandes avanços tecnológicos, o Brasil não conseguiu evoluir nas áreas de PD&I em medicamentos e vacinas.
Embora o Brasil tenha um sistema de pós-graduação moderno e seja um dos maiores produtores de artigos científicos na área da saúde, o país não conseguiu transformar esse conhecimento em inovação tecnológica aplicável ao setor farmacêutico. Este artigo continuará explorando os fatores que explicam essa falta de progresso e discutindo caminhos para o Brasil se tornar líder em inovação no setor farmacêutico.
Foto: G1 (Ana Clara Marinho/TV Globo)


Em 1976, com a reestruturação do Ministério da Saúde, foi criada a Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária, a partir da junção do Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina e Farmácia e do Serviço de Saúde dos Portos. Segundo o Decreto n. 79.056, de 30 de dezembro de 1976, em seu Art. 13º, caberia à nova Secretaria “promover ou elaborar, controlar a aplicação e fiscalizar o cumprimento de normas e padrões de interesse sanitário relativos a portos, aeroportos, fronteiras, produtos médico-farmacêuticos, bebidas, alimentos e outros produtos ou bens, respeitadas as legislações pertinentes, bem como efetuar o controle sanitário das condições do exercício profissional relacionado com a saúde”.
Em meados dos anos 1990, o então Secretário Nacional de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, professor Elisaldo de Araújo Carlini, propôs ao então ministro da Saúde Adib Jatene a criação de uma agência reguladora autônoma ligada ao Ministério da Saúde semelhante à Food and Drug Administration (FDA), comprovadamente uma das mais relevantes e respeitadas agências em todo o mundo. Nesse período, uma comissão de especialistas representando várias sociedades médicas e científicas denominada Comissão de Assessoramento em Medicamentos e Correlatos (CRAME), cujo coordenador por acaso era eu (J.B.C), assessorava a Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde na área de registro de medicamentos. Com a aprovação da proposta de criar uma agência reguladora autônoma no Brasil pelos membros da CRAME e posterior aprovação do Ministro Adib Jatene, foi enviada uma comissão de especialistas para visitar a FDA nos Estados Unidos e discutir seus estatutos e estrutura física e jurídica, visando criar no Brasil uma agência regulatória semelhante.
A criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) ocorreu em 26 de janeiro de 1999 e representou outro marco significativo para a regulação sanitária no Brasil e também para o avanço do setor farmacêutico nacional, notadamente dos medicamentos genéricos. Instituída pela Lei nº 9.782, a ANVISA foi concebida, a exemplo da FDA, como uma entidade inicialmente vinculada ao Ministério da Saúde, mas com autonomia administrativa, financeira e de gestão, para responder às crescentes demandas de saúde pública e segurança sanitária no país. Sua missão inclui a proteção da saúde da população por meio da regulamentação e fiscalização de produtos e serviços que envolvem riscos à saúde, incluindo medicamentos, alimentos, cosméticos e produtos para a saúde.
Papel da ANVISA na introdução dos medicamentos genéricos
Uma das contribuições mais relevantes da ANVISA foi sua atuação decisiva na consolidação do mercado de medicamentos genéricos no Brasil. A aprovação da Lei nº 9.787, de 1999, estabeleceu as bases para a política nacional de medicamentos genéricos. Essa legislação definiu os medicamentos genéricos como equivalentes terapêuticos dos medicamentos de referência, mas com preços mais acessíveis, já que não requerem investimentos com pesquisa e desenvolvimento de novas moléculas. Sob a liderança de seu primeiro diretor-presidente, Prof. Gonçalo Vecina, a ANVISA foi encarregada de regulamentar e certificar esses medicamentos, garantindo à população a qualidade, segurança e eficácia dos produtos.
Para viabilizar essa iniciativa, a ANVISA implementou rigorosos critérios para o registro de medicamentos genéricos, incluindo a exigência de estudos de bioequivalência e biodisponibilidade. Esses estudos são fundamentais para comprovar que o medicamento genérico possui o mesmo princípio ativo, dose, forma farmacêutica e eficácia terapêutica que o produto de referência. Além disso, a agência estabeleceu normas específicas para rotulagem e embalagem, assegurando transparência e confiança ao consumidor.
Impacto da criação da ANVISA na saúde pública e no mercado farmacêutico
A introdução dos medicamentos genéricos, respaldada pelo suporte regulatório da ANVISA, trouxe um impacto profundo na saúde pública brasileira. Esses medicamentos ampliaram significativamente o acesso da população a tratamentos essenciais, especialmente para doenças crônicas, como hipertensão e diabetes, ao mesmo tempo em que reduziram os custos tanto para os pacientes e para o SUS. Estima-se que, desde sua implementação, os genéricos tenham gerado uma economia de bilhões de reais para o país.
No mercado farmacêutico, a ANVISA também desempenhou um papel crucial ao promover a competitividade e reduzir a concentração de mercado entre grandes laboratórios. Essa dinâmica contribuiu, de certa forma, para incentivar a inovação, a melhoria contínua na produção de medicamentos e o fortalecimento da indústria farmacêutica nacional.
Papel da ANVISA no avanço da inovação tecnológica e no desenvolvimento de medicamentos e vacinas inovadores no Brasil
Claramente, a ANVISA não teve o mesmo sucesso no apoio à inovação radical e no desenvolvimento de novos medicamentos e vacinas no Brasil comparado ao seu papel relevante na fiscalização e lançamento dos medicamentos genéricos. A ANVISA é uma agência reguladora muito jovem, atualmente com apenas 25 anos, quando comparada com a centenária FDA que lhe serviu como modelo. Além disso, como será discutido mais adiante neste artigo, é urgente que a ANVISA amplie seu quadro de profissionais especializados, com formação sólida na área regulatória, e invista no treinamento continuo de seus técnicos. Idealmente, esses treinamentos deveriam incluir estágios de longa duração no exterior, realizados em parcerias com as principais agências reguladoras internacionais e instituições acadêmicas de referência.
Dado que a inovação tecnológica na indústria farmacêutica nacional não evoluiu como desejado no desenvolvimento de medicamentos inovadores, a ANVISA também não teve a oportunidade de capacitar adequadamente seu corpo técnico no desenho e análise de protocolos pré-clínicos e clínicos, bem como na avaliação de dossiês de registro de medicamentos inovadores desenvolvidos internamente.
A necessidade de criar na ANVISA um sistema de Investigational New Drug Application (IND) semelhante ao existente na FDA.
Na Newsletter anterior (dezembro de 2024 ver https://www.cienp.org/a-criacao-da-food-and-drug-administration-fda-e-seus-reflexos-no-desenvolvimento-da-industria-farmaceutica), discutimos detalhadamente a criação pela FDA ainda na década de 1960, do IND, e de seu impacto no progresso da inovação tecnológica e no desenvolvimento de novos medicamentos pela indústria farmacêutica americana desde então.
O objetivo central do IND é proteger os voluntários humanos envolvidos nos ensaios clínicos, estabelecendo um processo rigoroso de avaliação. Além disso, o IND exige que as indústrias farmacêuticas comprovem à FDA que o candidato a medicamento foi testado adequadamente em estudos pré-clínicos e que não apresenta riscos imediatos para a saúde humana; e que além de ser seguro, o candidato a medicamento também é eficaz para tratar a condição para a qual estava sendo desenvolvido. Isso ajuda a evitar que substâncias sem comprovação de benefícios (ou com relação custo-benefício desfavorável) sejam comercializadas. O IND também permite um acompanhamento mais eficaz do progresso dos estudos clínicos, com dados sendo reportados regularmente à FDA, o que ajuda a identificar rapidamente qualquer problema potencial. O processo também visa aumentar a transparência na pesquisa clínica, exigindo a submissão de informações detalhadas sobre os protocolos dos testes, composição do medicamento, resultados dos testes pré-clínicos e outras informações relevantes.
Entendemos também que a ANVISA necessita, além de contratar novos técnicos especialistas em aspectos regulatórios, treinar seu corpo técnico em pesquisa pré-clínica translacional e em pesquisa clínica preferencialmente em parceria com agências reguladoras internacionais. Como a presença de novos técnicos experientes parece premente para modernizar a agência, uma estratégia seria contratar consultores com comprovada experiência no mercado internacional na área de desenvolvimento e registro de medicamentos e estabelecer com prioridade um sistema semelhante ao IND existente na FDA.
Conforme destacado na última Newsletter, a introdução do IND representa um marco significativo para impulsionar a inovação tecnológica no desenvolvimento de novos medicamentos. Essa iniciativa trará benefícios substanciais para a indústria farmacêutica, start-ups e academia, incluindo:
Mais rigor: a exigência de estudos pré-clínicos e um protocolo rigoroso de ensaios clínicos obrigou as empresas a se profissionalizar ainda mais no processo de desenvolvimento de medicamentos. Isso resultou em um aumento da qualidade dos estudos clínicos e na criação de um sistema mais robusto de testes;
Mais transparência e controle: A necessidade de fornecer dados detalhados e documentação à FDA aumentou a transparência no processo de desenvolvimento de medicamentos. As indústrias farmacêuticas tiveram que adotar práticas mais meticulosas de documentação, controle de qualidade e vigilância de segurança;
Celeridade e inovação: Embora o processo de submissão do IND tenha tornado o desenvolvimento de novos medicamentos mais demorado e oneroso inicialmente, ele também acelerou a aprovação de medicamentos à medida que as indústrias se adaptaram. A possibilidade de dialogar com técnicos da FDA durante o desenvolvimento dos candidatos a medicamentos permitiu às empresas aperfeiçoar seus métodos. Além disso, o IND fomentou a inovação ao abrir caminho para a experimentação com novas substâncias e terapias;
Desafios financeiros: A introdução do IND trouxe desafios financeiros e logísticos significativos. As exigências rigorosas tornaram o desenvolvimento de medicamentos mais caro e demorado, demandando altos investimentos em pesquisa em conformidade regulatória. Como resultado, grandes empresas farmacêuticas se fortaleceram, enquanto pequenas empresas enfrentaram dificuldades para competir devido aos altos custos envolvidos nos ensaios clínicos.
Mas, afinal, por que o Brasil não alcançou o mesmo desempenho em avançar na PD&I para o desenvolvimento de medicamentos inovadores, em comparação com a Coreia, China e Índia?
Responder a esta pergunta não é uma tarefa trivial, pois envolve diversas questões complexas que caracterizam cada um desses países. Primeiramente, é importante destacar que, entre os três países selecionados, a China e a Índia possuem sistemas políticos muito distintos do Brasil, além de terem populações cerca de 6 vezes maiores, o que dificulta qualquer comparação sem uma análise mais aprofundada. No entanto, apesar dessas diferenças significativas, todos os três países, ao contrário do Brasil, adotaram nas últimas décadas estratégias semelhantes que impulsionaram o avanço na inovação de medicamentos e vacinas. Os avanços alcançados pela China, Índia e Coreia do Sul no campo da inovação farmacêutica e biotecnológica resultaram de estratégias bem coordenadas para superar desafios históricos no setor de inovação em fármacos e medicamentos. Entre essas estratégias destacam-se: i) formação de pessoal qualificado em todos os níveis educacionais; ii) políticas de estado e de longo prazo de investimentos em PD&I; iii) apoio às startups e incentivo a formação de fundos de investimentos privados; iv) modernização das suas agências reguladoras visando reduzir os prazos de análises dos estudos pré-clínicos e clínicos e a aprovação de novos produtos; v) estímulo às parcerias entre a academia e as indústrias; vi) adaptação ao sistema internacional de patentes.
Veja a seguir como cada país enfrentou esses desafios:
1. Investimento em Formação de Pessoal Qualificado e em PD&I
China:
Aumentou nas últimas duas décadas o percentual do seu PIB em investimentos em PD&I, incluindo em pesquisa básica translacional nas áreas relacionadas ao desenvolvimento de medicamentos, vacinas e biotecnologia;
Investiu em educação superior e programas de intercâmbio para capacitar pesquisadores em instituições de ponta no exterior, especialmente nos Estados Unidos;
Criou programas como o "Plano Mil Talentos" para atrair especialistas de volta ao país, oferecendo incentivos financeiros e oportunidades em instituições de pesquisa e indústrias estratégicas;
Estabeleceu zonas econômicas dedicadas à biotecnologia, com treinamento técnico para trabalhadores e pesquisadores;
Promoveu estímulo de longo prazo para startups de base tecnológica e o surgimento de capital privado para investimentos em projetos de risco nessas empresas;
Estimulou fortemente a parceria entre o setor acadêmico e as indústrias.
Índia:
Focou no fortalecimento das instituições de ensino técnico, como Institutos de Tecnologia da Índia (IITs) e Institutos Nacionais de Tecnologia (NITs);
Incentivou a colaboração entre a academia e a indústria por meio de programas de estágio e parcerias;
Criou centros de excelência em biotecnologia e na área farmacêutica, com suporte governamental para capacitar profissionais em novas tecnologias;
Estimulou a criação de empresas farmacêuticas com padrão de certificação equivalentes aos exigidos pela FDA.
Coreia do Sul:
Aumentou expressivamente, nas últimas décadas, o percentual do PIB destinado a investimentos em PD&I, com foco na pesquisa básica e translacional nas áreas de desenvolvimento de medicamentos, vacinas e biotecnologia;
Investiu pesadamente na educação em todos os níveis e em programas de intercâmbio internacional, capacitando pesquisadores em instituições de excelência no exterior;
Implementou uma abordagem integrada ao fortalecer universidades e criar programas como o "Brain Korea 21", destinados a formar líderes em pesquisa e inovação;
Estabeleceu parcerias estratégicas entre o setor privado, universidades e institutos de pesquisa, visando desenvolver competências específicas em biotecnologia e áreas afins no setor farmacêutico;
Atraiu multinacionais para criar hubs de pesquisa no país, ampliando as oportunidades de capacitação prática.
2. Modernização das Agências Reguladoras
China:
Reformou e modernizou sua agência reguladora, a Administração Nacional de Produtos Médicos (NMPA), para acelerar a análise e aprovação de estudos pré-clínicos, clínicos e os dossiês para registro de medicamentos inovadores e vacinas;
Adotou padrões internacionais de segurança e eficácia, promovendo a harmonização com práticas da FDA (EUA) e EMA (Europa);
Digitalizou processos para aumentar a transparência e reduzir a burocracia.
Índia:
Modernizou a Organização Central de Controle de Padrões de Medicamentos (CDSCO), implementando diretrizes para a revisão acelerada de medicamentos prioritários;
Implementou políticas mais rigorosas de controle de qualidade, especialmente após críticas internacionais relacionadas à fabricação medicamentos genéricos;
Criou "zonas verdes" para acelerar a pesquisa clínica e a produção de medicamentos inovadores.
Coreia do Sul:
A Agência Coreana de Medicamentos e Alimentos (MFDS) adotou processos ágeis para avaliar estudos pré-clínicos e clínicos e para aprovar o registro de medicamentos inovadores, muitas vezes em parcerias público-privadas;
Priorizou regulamentações voltadas à biotecnologia, como terapias celulares e medicamentos biológicos;
Consolidou-se como referência global ao adotar práticas regulatórias pioneiras, que hoje servem como modelo para outros países asiáticos.
3. Reconhecimento de Patentes na Área Farmacêutica
China:
Passou por uma transição importante antes de aderir à Organização Mundial do Comércio (OMC), mas, em 2001, comprometeu-se a reconhecer patentes farmacêuticas como parte do acordo TRIPS (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights);
Reformou suas leis de patentes, incentivando as empresas nacionais a competir no cenário global, e atualmente a China ultrapassou os Estados Unidos em número de patentes;
Fomentou o registro de patentes internas e externas, oferecendo subsídios para impulsionar a inovação.
Índia:
Inicialmente resistiu ao reconhecimento total de patentes farmacêuticas, priorizando a produção de medicamentos genéricos. No entanto, em 2005, reformou sua Lei de Patentes para se alinhar ao TRIPS;
Introduziu o conceito de "patentes compulsórias" para equilibrar inovação com acessibilidade, permitindo a produção de genéricos em casos de necessidade pública;
Incentivou empresas locais a investir em PD&I, garantindo proteção a inovações relevantes.
Coreia do Sul:
Adotou um modelo pró-inovação, reconhecendo patentes desde o início de sua industrialização em biotecnologia;
Estimulou a criação de propriedade intelectual, oferecendo incentivos fiscais para empresas que registrassem patentes;
Firmou acordos bilaterais para facilitar o reconhecimento mútuo de patentes com mercados importantes, como os Estados Unidos e a União Europeia.
Dados de janeiro de 2024 do Pharmaproject® indicam que a China ocupa o segundo lugar em número de novos medicamentos em desenvolvimento, com 6.028 novas drogas sendo desenvolvidas, o que corresponde a 25,7% do total analisado em 29 países. Os Estados Unidos aparecem em primeiro lugar, com 11.200 novas drogas em desenvolvimento (49,1% do total). A Coreia aparece em terceiro lugar, com 3.332 novos medicamentos em desenvolvimento (14,2%). O estudo também analisou a evolução da Índia, que contava com 624 novos medicamentos em desenvolvimento em 2024, embora não tenha sido informada sua posição entre os países analisados. Não há menção sobre a inovação tecnológica em produtos para saúde no Brasil neste documento.
Um estudo publicado por Nyko e colaboradores em 2024 na revista do BNDES indica que a indústria farmacêutica indiana faturou US$42 bilhões no ano fiscal de 2021-2022 e exportou mais da metade de seu faturamento – US$23,5 bilhões. Em volume, a Índia é a maior fornecedora mundial de vacinas (60%) e de medicamentos genéricos (20%). Além disso, a Índia possui o maior número de plantas farmacêuticas em conformidade com a FDA fora dos EUA e abriga mais de 3 mil empresas farmacêuticas, com mais de 10.500 fábricas. Ainda, a Índia conta com cerca de quinhentos fabricantes de IFA, que representam aproximadamente 8% da produção mundial.
É possível concluir, com base no exposto acima, que apesar das grandes diferenças entre eles, a Coreia, China e Índia superaram indiscutivelmente barreiras científicas, tecnológicas e regulatórias gigantescas nas últimas três décadas. Isso foi possível por meio de uma combinação de estratégias bem-sucedidas, envolvendo políticas públicas eficazes, investimentos estratégicos e cooperação entre governo, academia e indústria, incentivos à educação em todos os níveis e modernização de suas agências reguladoras. Hoje, esses 3 países estão na vanguarda da inovação farmacêutica e biotecnológica mundial, liderando pesquisas e a produção de medicamentos genéricos, biológicos, terapias avançadas e terapias gênicas. Enquanto a China e a Coreia do Sul apostam na inovação disruptiva, a Índia continua a se consolidar como uma potência global focada na produção de medicamentos acessíveis às populações mais pobres e na produção de IFA, com sua indústria farmacêutica em crescimento contínuo a cada ano.
Fica claro, portanto, que o Brasil ainda necessita superar desafios importantes e percorrer rapidamente um longo caminho, se realmente deseja desenvolver competências internas e se capacitar cientificamente e tecnologicamente para realizar todo o ciclo de desenvolvimento de medicamentos e vacinas necessários, a fim de reduzir sua enorme dependência externa e atender sua população, conforme estabelece a Constituição Federal. O Brasil também precisa repensar o modelo de inovação adotado nas últimas décadas, que tem se concentrado essencialmente na substituição de importações, como foco em resultados de curto prazo. Esse modelo não se mostrou eficaz nas últimas décadas em nenhum outro país que tenha conseguido dominar toda a cadeia de PD&I na área da saúde e se tornar independente na produção de seus medicamentos e vacinas essenciais para o atendimento de suas populações.
O sucesso inquestionável da Coreia, China e Índia no domínio da complexa e longa cadeia de desenvolvimento de medicamentos inovadores e vacinas nas últimas três décadas, associado ao rápido crescimentos das indústrias farmacêuticas e de biotecnologia desses países, impõe ao Brasil grandes desafios e a urgente necessidade de repensar seu modelo de inovação tecnológica na área de fármacos, medicamentos e vacinas. Entre muitas outras medidas, seria necessário: i) aumentar progressivamente a porcentagem do PIB destinada à pesquisa básica translacional e tecnológica nas áreas relacionadas ao desenvolvimento de produtos inovadores para a saúde humana; ii) Estabelecer uma política de Estado de longo prazo para estimular a PD&I no setor farmacêutico; iii) Estimular e fortalecer as parcerias entre a academia e as indústrias; iii) Modernizar a ANVISA, com ênfase na ampliação do seu quadro técnico e, principalmente, na formação de recursos humanos nas áreas regulatórias e de desenvolvimento de medicamentos e vacinas, preferencialmente por meio de parcerias com agências reguladoras internacionais, além de contratação de profissionais treinados em outros países; iv) Estimular o treinamento de pessoal qualificado no exterior em todas as áreas relacionadas ao desenvolvimento de medicamentos e vacinas, notadamente em química medicinal, estudos pré-clínicos, estudos clínicos, aspectos regulatórios, biotecnologia, terapia celular, terapia gênica, desenvolvimento de novas formulações farmacêuticas de várias naturezas, escalonamento de produtos candidatos a medicamentos e vacinas e produção de IFA; v) Estimular e apoiar startups de base tecnológica nas diversas áreas relacionadas ao desenvolvimento de medicamentos, vacinas e biotecnologia, favorecendo a participação do capital privado por meio de fundos de investimento, entre outras iniciativas.
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