Inovação Radical na Indústria Farmacêutica e de Biotecnologia
Nesta edição, exploramos os desafios e oportunidades da inovação radical na indústria farmacêutica e de biotecnologia: do papel das startups e da pesquisa translacional até o impacto das políticas públicas e investimentos. Um panorama completo para entender como nascem as terapias que podem transformar a saúde humana.
Sara Tolouei, PhD; Fabiana C. V. Giusti, PhD; Rodrigo Marcon, PhD e João B. Calixto, PhD
9/3/202510 min read


A inovação radical visando o desenvolvimento de novos medicamentos, seja a partir pequenas moléculas sintéticas ou de biotecnologias, surge quando avanços científicos sobre novos alvos terapêuticos, biomarcadores, entre outros obtidos na pesquisa básica, fornecem hipóteses para o desenvolvimento de novas terapias antes inviáveis. Os exemplos recentes são muitos, podendo ser mencionados novos tratamentos para o câncer, medicamentos antivirais, terapias para a obesidade e doenças metabólicas, terapias gênicas e celulares, anticorpos biespecíficos, plataforma de RNA mensageiro e moléculas desenvolvidas com apoio de inteligência artificial, entre muitas outras terapias desenvolvidas nas últimas décadas.
A inovação radical para desenvolvimento de novas terapias, independente da tecnologia a ser seguida, é um empreendimento de alto risco e envolve recursos financeiros substanciais. Além disso, desenvolver novos medicamentos exige uma equipe multidisciplinar com comprovada experiência, a existência de um ambiente regulatório favorável, bem como um ecossistema robusto de ciência básica de alto padrão, regulação clara e processos de escalonamento nos âmbitos laboratorial, piloto e industrial bem definidos. Este texto discute alguns aspectos críticos para compreender e acelerar a inovação radical em produtos para a saúde humana, com foco em evidências internacionais, mas que poderá auxiliar no avanço deste processo em países de baixa taxa de inovação tecnológica.
O papel das startups e empresas emergentes
Startups de biotecnologia são hoje a principal fonte de descobertas de novos medicamentos altamente inovadores, os chamados “first‑in‑class”, e de novas plataformas que vem revolucionando o avanço de terapias antes inimagináveis. Elas operam na fronteira do conhecimento adquirido na ciência básica e enfrentam elevados riscos que, muitas vezes, grandes farmacêuticas globais evitam devido as elevadas taxas de insucesso. As startups que superaram os desafios iniciais e avançaram na inovação radical na área da saúde em países desenvolvidos, se destacam por possuírem algumas características em comum, entre elas:
Exploração de ciência de fronteira como ponto de partida: traduzem achados acadêmicos (ciência básica) em programas pré-clínicos, estruturando a prova de conceito (eficácia pré-clínica), seguido por garantia da propriedade intelectual da descoberta (patente);
Velocidade e foco: constroem equipes multidisciplinares pequenas, mas orientadas a marcos de sucesso (milestones), tanto técnicos como regulatórios;
Foco em parcerias: licenciam ativos (projetos) para grandes empresas farmacêuticas durante o desenvolvimento pré-clínico, mas preferencialmente nas fases clínicas intermediárias (fases clínicas I e II) e compartilham risco por meio de co‑desenvolvimento e milestones financeiros;
Diversificação do pipeline: elegem diversos alvos de doenças e mecanismos moleculares (alvos terapêuticos) visando aumentar a taxa de sucesso em áreas médicas ainda pouco exploradas.
O resultado dessas iniciativas é, em geral, obter um modelo híbrido, no qual as startups mapeiam e avançam na identificação de candidatos inovadores, conduzem todo o desenvolvimento pré-clínico e eventualmente avançam até os estudos clínicos iniciais. A partir daí a tecnologia é transferida para uma grande farmacêutica que se responsabiliza pelo desenvolvimento final do produto, incluindo os estudos clínicos multicêntricos, escalonamento, registro e lançamento no mercado. Esse modelo baseado em parcerias, gera eficiência e tem sido adotado em vários países que conseguiram dominar toda a cadeia de desenvolvimento de novos medicamentos.
A importância da pesquisa translacional de alta qualidade
O sucesso da inovação radical em terapias para a saúde humana demanda a capacidade de translação dos conhecimentos oriundos da pesquisa básica em produtos inovadores para tratar doenças atualmente sem tratamentos ou que exijam melhores terapias. Alguns aspectos são críticos para o sucesso de projetos inovadores nesta área:
Modelagem preditiva e biomarcadores: a capacidade de alinhar modelos pré-clínicos in vitro/in vivo associando a descoberta de biomarcadores com hipóteses clínicas. Este processo pode reduzir a incerteza e eventualmente pode ajudar no desenho dos estudos clínicos. Bancos de dados moleculares, plataformas ômicas e por imagem funcional permitem definir as populações‑alvo e “endpoints” mais sensíveis;
Planejamento, qualidade de desenho e translação da fase pré-clínica para a fase clínica: uma etapa que demanda experiência é a transposição dos estudos em animais para humanos. A necessidade de estabelecer critérios bem definidos para inclusão e exclusão impacta significativamente a qualidade e a confiabilidade dos estudos clínicos, podendo mitigar riscos de interrupção de projetos de inovação radical na fase clínica II (também conhecida como “vale da morte”), onde a maioria dos projetos de inovação radical em medicamentos é interrompida por falta de eficácia clínica;
Necessidade de seguir, desde o início do projeto, as boas práticas de laboratório (BPL), boas práticas clínicas (BPC) e as boas práticas de fabricação (BPF): como o desenvolvimento de novos medicamentos é altamente regulado pelas agências regulatórias de cada país, seguir as normas da BPL, BPC e BPF garante obter dados reprodutíveis, robustos e, mais importante, capazes de atender as necessidades regulatórias desde a fase pré‑clínica, evitando atrasos nos projetos, trabalho e custos financeiros adicionais.
Em resumo, a excelência em pesquisa translacional é uma exigência científica, mas que reflete positivamente no desenvolvimento do produto. Portanto, a integração e a troca constante de experiência entre as empresas e as agências regulatórias, desde o início da etapa pré-clínica (ex., reuniões de aconselhamento científico), torna-se uma condição necessária para o sucesso de qualquer projeto de inovação radical.
O papel dos governos e dos investidores privados
Diante dos elevados custos, dos riscos significativos e do longo tempo de maturação, a inovação radical voltada ao desenvolvimento de novos medicamentos exige parcerias estratégicas e financiamento conjunto de governos e investidores privados. Aos governos, em particular, cabe: (i) financiar a pesquisa básica de excelência, formar recursos humanos altamente qualificados para atuar em equipes multidisciplinares e assegurar infraestrutura adequada de pesquisa e inovação em universidades e institutos de pesquisa, etc.; (ii) estimular o apoio financeiro por meio de instrumentos apropriados, como fundos de investimento, subvenções econômicas, encomendas tecnológicas e contratos de co-desenvolvimento para manter um ambiente de inovação atrativo e competitivo; (iii) regular com previsibilidade, estabelecendo rotas de desenvolvimento aceleradas, guias “guidelines” técnicos claros e fomentando redes de pesquisa pré-clínica e clínica, além de outras etapas críticas da cadeia de desenvolvimento de medicamentos; (iv) impulsionar a demanda qualificada, utilizando compras públicas inovadoras, mecanismos de reembolso para terapias de alto valor, modelos baseados em resultados e novas encomendas tecnológicas; (v) aprovar preços compatíveis com a inovação tecnológica, de modo a garantir retorno financeiro adequado e incentivar investimentos em novos produtos proporcionais aos riscos assumidos pelas empresas.
Cabe ao setor privado (indústrias farmacêuticas e outras): i) criar e manter programas de inovação radical dentro da indústria com foco a longo prazo; ii) contratar pessoal qualificado em diversas áreas como farmacologia pré-clínica (eficácia e mecanismo de ação), toxicologia geral, desenvolvimento farmacêutico, aspectos regulatórios, pesquisadores clínicos e em inteligência artificial, entre outros, formados nas melhores universidades do país ou do exterior e com experiência prévia; iii) criar laboratórios próprios de pesquisa e inovação que possam dar suporte aos avanços iniciais do desenvolvimento pré-clínico; iv) estabelecer parcerias com pesquisadores das universidades, institutos de pesquisas no Brasil e quando necessário no exterior.
Taxa de sucesso dos projetos de inovação radical
Embora esses fatores variem bastante em função da área terapêutica e a complexidade da terapia, alguns padrões são consistentes:
Da fase de descoberta (desenho de moléculas, anticorpos, estudos in vitro/in vivo) até chegar a um candidato em desenvolvimento clínico: apenas ~1 em cada 10.000 moléculas avaliadas chega aos ensaios clínicos em humanos. Somando todo o percurso, da descoberta até o registro, a chance média de sucesso fica em torno de 0,01% a 0,1% (ou seja, 1 em cada 1.000 a 10.000 projetos iniciais gera um medicamento aprovado).
Uma análise realizada sobre os medicamentos aprovados no período entre 2011 e 2020, demonstrou que a taxa média de aprovação de medicamentos partindo da fase clínica I foi de apenas 7,9%. Os principais determinantes do sucesso são: indicação da doença, alvo terapêutico, modalidade do candidato a medicamento e o grau de inovação. Algumas taxas de sucesso são: hematologia (17,3%), seguida de medicamentos CAR-t (17,3%), doenças raras (17%), RNAi (13,3%), doenças crônicas de alta prevalência (5,9 %) e urologia (3,6%). A taxa média de sucesso de um novo medicamento da fase I para a fase II é 52%; da fase II para a fase III é de apenas 29%; e da fase III para a solicitação de registro é 58%. A fase clínica II é, portanto, o maior gargalo, também conhecida como o “vale da morte”. Em média, um medicamento leva 10,5 anos para o desenvolvimento completo, sendo que áreas com taxas mais altas de sucesso também apresentam ciclos de desenvolvimento mais curtos.
Em termos práticos, apenas uma fração minoritária dos programas de inovação radical na área farmacêutica atinge o mercado, razão pela qual a existência de portfólios diversificados e decisões de “interromper o projeto o mais cedo possível” são vitais. Para planejamento corporativo, isso implica altas taxas de desistência e necessidade de “pipeline” amplo para gerar alguns poucos projetos vencedores.
Onde ocorrem as inovações radicais em saúde humana
Conforme discutido em maior profundidade na Newsletter n° 02, de julho de 2024 (https://us22.campaign-archive.com/?u=5ea40dc0366d5978bffc151f3&id=a2e80ac34e), a inovação radical visando o desenvolvimento de novos medicamentos concentra‑se onde há densidade de ciência básica de elevada qualidade, abundância de capital de risco, políticas públicas adequadas e regulação previsível. Abaixo são listados os países que mais se destacaram nas últimas décadas no desenvolvimento de terapias inovadoras:
Estados Unidos: Boston/Cambridge, Bay Area, San Diego e Research Triangle lideram a inovação radical para desenvolvimento de medicamentos, com amplo capital de risco e possibilidade de realizar ensaios clínicos bem planejados que levam a aprovações de novos produtos;
Europa: Reino Unido (Cambridge/Oxford/Londres), França (Paris) Suíça (Basel/Zurique), Alemanha (Munique), Bélgica/Países Baixos e Países Nórdicos formam os principais centros competitivos, com ciência básica de qualidade e manufatura biofarmacêutica;
Ásia: China (regulação modernizada, parques tecnológicos modernos de bioinovação, melhora crescente na ciência básica, existência de capital de risco e apoio governamental crescente e de longo prazo), Singapura (infraestrutura e políticas pró‑P&D), Coreia do Sul e Japão (força em biológicos e semicondutores aplicados à saúde);
Outros polos: Israel, Canadá e Índia figuram como centros de inovação radical em medicamentos relevantes alcançados nas últimas duas décadas.
Quanto custa desenvolver um medicamento inovador
Os custos variam amplamente conforme a área terapêutica, modalidade (pequenas moléculas, biológicos, RNAs, terapias celulares/gênicas), o desenho do programa e a taxa de insucesso considerada. Estimativas recentes indicam que o desenvolvimento de um novo medicamento pode demandar investimentos entre US$ 1 a 2 bilhões por ativo, levando-se em conta quando se capitalizam falhas do portfólio. Em áreas com maior taxa de sucesso, esses custos podem ser menores, na faixa de centenas de milhões de dólares. Já os medicamentos para as terapias avançadas podem ultrapassar US$ 2 bilhões de dólares em custos de desenvolvimento.
Algumas Prioridades para o Brasil
Para reduzir a dependência de importações de medicamentos e IFAs (Insumos Farmacêuticos Ativos) e elevar a taxa de inovação radical em produtos para a saúde humana, o Brasil precisa de uma agenda de Estado com metas mensuráveis e bem avaliadas por especialistas para um ciclo de pelo menos 10 a 15 anos, com foco em algumas áreas prioritárias, tais como:
1. Estruturação de plataformas onde há vantagem relativa: imunobiológicos, vacinas, biofármacos e terapias de RNA, alavancando a capacidade instalada em institutos públicos e privados. O objetivo é ampliar o acesso da população a medicamentos de elevada complexidade, necessário para manter a sustentabilidade de longo prazo do Sistema Único de Saúde (SUS) e reduzir os impactos econômicos na importação de IFAs e de medicamentos acabados;
2. Melhorar a Infraestrutura de pesquisa básica translacional e cumprimento dos aspectos regulatórios: expansão/modernização da ANVISA, ampliação e modernização das instalações para ensaios pré-clínicos em BPL (com biotérios próprios) e para a manufatura em BPF, dos centros de escalonamento de IFAs, instalações que realizem o desenvolvimento de formulações farmacêuticas para dar suporte as fases clínicas, laboratórios analíticos modernos e ampliação das redes de ensaios pré-clínicos e clínicos (fase I até fase III);
3. Apoio governamental: subvenções reembolsáveis e não reembolsáveis, facilitar a formação de fundos de coinvestimento privados especializados, estimular os contratos de desenvolvimento por encomendas e compartilhamento de risco;
4. Regulação previsível com estímulo à parceria com a agência regulatória: atualização de guias técnico-científicos, criação de canais de aconselhamento científico entre a ANVISA e os pesquisadores, implementação de rotas aceleradas de aprovação de medicamentos (ex., doenças raras e negligenciadas), reconhecimento de estudos multicêntricos internacionais e fortalecimento da capacidade da ANVISA para interações precoces, revisão de dados e adaptação de protocolos pré-clínicos e clínicos;
5. Estímulo às compras públicas para produtos inovadores: aprovação de preços adequados para produtos inovadores que leve em conta a tecnologia empregada, os riscos envolvidos bem como o tempo para concluir a inovação;
6. Estratégia de formação continuada de talentos: treinamento de pessoal qualificado no exterior e no Brasil para atender a ANVISA, INPI, indústrias, centros de pesquisa pré-clínica e clínica, universidades, institutos de pesquisa e outras instituições.
Conclusão
A inovação radical farmacêutica é beneficiada pela existência de um ecossistema integrado que combina ciência básica multidisciplinar de excelência, presença de capital de risco, políticas governamentais de longo prazo para apoiar à inovação, regulação responsiva, infraestrutura translacional e abundância de talentos especializados. Startups e grandes farmacêuticas desempenham papéis complementares; pesquisa translacional de qualidade e domínio regulatório elevam as taxas de sucesso, enquanto políticas públicas consistentes atraem investimentos privados. Países que articularam esses elementos lideram as ondas recentes de inovação radical em saúde humana.
Para o Brasil, a alternativa à dependência externa é expandir capacidades nacionais em plataformas estratégicas, abrangendo toda a cadeia de desenvolvimento de medicamentos (pesquisa básica, pesquisa pré-clínica regulada até a pesquisa clínica), com foco em qualidade, previsibilidade regulatória e escala produtiva.
Referências consultadas
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