Gargalos para a Transposição de Estudos Pré-Clínicos para Estudos Clínicos (Fase I) no Brasil – Parte II.
Nesta segunda parte da série sobre os gargalos da transposição pré-clínica no Brasil, exploramos os principais desafios do desenvolvimento de formulações farmacêuticas — etapa essencial para garantir a segurança, eficácia e viabilidade clínica de novos medicamentos, incluindo os voltados para terapias avançadas.
Fabiana C. V. Giusti, PhD; Sara Tolouei, PhD e João B. Calixto, PhD
4/11/20259 min read
Desenvolvimento de formulação farmacêutica
Após realizar todos os estudos pré-clínicos para comprovar a segurança e a eficácia de um candidato a medicamento, o desenvolvimento da formulação farmacêutica é o próximo desafio a ser vencido. Esta formulação será usada para a administração oral, parenteral ou tópica, entre outras, durante os estudos clínicos. Em casos de desenvolvimento de medicamentos para as chamadas terapias avançadas (antisensos oligonucleotídeos, micro RNA, e terapias gênicas), o desenvolvimento da formulação é significativamente mais complexo pois utiliza formatações especiais para evitar a degradação dos produtos e para direcionar o fármaco para o alvo. Esta abordagem será discutida a seguir.
O desenvolvimento de uma formulação farmacêutica constitui um passo fundamental para a realização de estudos clínicos em humanos para assegurar a segurança e a viabilidade da administração. Para atingir estes objetivos, a formulação precisa garantir que o fármaco seja seguro para administração em humanos, minimizando eventuais efeitos adversos e toxicidade. Além disso, a formulação precisa ser compatível com vias de administração viáveis para os participantes do estudo (oral, intravenosa, tópica, etc.).
Importante destacar que a formulação influencia na absorção, distribuição, metabolização e excreção (ADME) do fármaco. Uma formulação inadequada pode comprometer a biodisponibilidade do candidato a medicamento, reduzindo sua eficácia e exigindo ajustes nas doses. Ademais, os ensaios clínicos exigem consistência entre os lotes da formulação indispensáveis para garantir que todos os participantes recebam doses equivalentes. A qualidade e a estabilidade da formulação são de extrema relevância e são monitoradas para evitar variações que possam comprometer os resultados.
As agências regulatórias, como a ANVISA, FDA e EMA, exigem que a formulação atenda a padrões de boas práticas de fabricação (BPF). A formulação deve ser bem caracterizada - preferencialmente testada em estudos pré-clínicos - antes de ser usada em humanos. Uma formulação otimizada garante que o fármaco atinja o local de ação em concentrações adequadas para exercer seu efeito terapêutico. Mais importante, permite o ajuste de parâmetros como liberação controlada, melhorando a adesão e os resultados clínicos. Por fim, a formulação inicial usada nos ensaios clínicos influencia o desenvolvimento da versão final do medicamento para comercialização e pode impactar nos custos de produção, estabilidade e aceitação pelo mercado.
Sem uma formulação bem desenvolvida, um novo medicamento pode falhar nos ensaios clínicos devido a problemas de segurança, eficácia ou viabilidade de administração, atrasando seu desenvolvimento e aumentando custos.
Etapas do Desenvolvimento da Formulação
O desenvolvimento de uma formulação farmacêutica segura e eficaz para um Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), destinado à confecção, por exemplo, de comprimidos, com o objetivo de iniciar ensaios clínicos de Fase I em voluntários saudáveis, envolve uma série de etapas, princípios e cuidados regulatórios. Abaixo estão alguns dos principais aspectos a serem considerados:
1. Seleção e Caracterização do IFA
Caracterização Físico-Química: avaliação das propriedades do IFA, como solubilidade, estabilidade, tamanho de partícula, polimorfismo e higroscopicidade, solubilidade e perfil de dissolução, estabilidade térmica e química, perfil de degradação e compatibilidade com excipientes;
Compatibilidade: testes de compatibilidade entre o IFA e os excipientes para garantir que não haja interações indesejáveis.
2. Seleção dos Excipientes
Os excipientes são selecionados para garantir estabilidade, biodisponibilidade e aceitabilidade da formulação. Os excipientes mais comuns incluem:
Diluentes (ex.: lactose, celulose microcristalina);
Ligantes (ex.: PVP, amido pré-gelatinizado);
Desintegrantes (ex.: crospovidona, croscarmelose);
Lubrificantes (ex.: estearato de magnésio);
Agentes de revestimento (quando necessários para estabilidade ou liberação controlada).
3. Desenvolvimento da Formulação
Seleção de Excipientes: escolha de excipientes adequados (diluentes, lubrificantes, desintegrantes, etc.) que sejam seguros, eficazes e compatíveis com o IFA;
Desenvolvimento do Processo: definição do processo de fabricação, abrangendo etapas como mistura, granulação, compressão e revestimento, se necessário;
Otimização da Formulação: ajuste da formulação para garantir a liberação adequada do IFA, estabilidade e características físicas desejadas (dureza, friabilidade, etc.).
4. Avaliação da Formulação
É necessária a realização de testes físicos para estudar propriedades como dureza, friabilidade, desintegração e dissolução. Além disso, são fundamentais os estudos de estabilidade acelerada e de longo prazo, a fim de garantir que a formulação mantenha suas características ao longo do tempo. Por fim, devem ser realizados os estudos biofarmacêuticos, incluindo testes de dissolução e permeabilidade para prever o comportamento in vivo.
5. Princípios do Desenvolvimento
Os aspectos mais relevantes que regem o desenvolvimento das formulações são os seguintes:
Qualidade: abordagem sistemática que visa garantir a qualidade do produto desde o início do desenvolvimento, identificando e controlando variáveis críticas do processo e da formulação;
Boas Práticas de Fabricação (BPF): adesão rigorosa às BPF, garantindo que o produto seja fabricado de maneira consistente e controlada, minimizando riscos de contaminação e erros;
Segurança e Eficácia: garantia de que a formulação seja segura para administração em humanos e libere o IFA de maneira eficaz, alcançando o efeito terapêutico desejado.
6. Cuidados Regulatórios
a. Submissão de Documentação
Dossiê de Desenvolvimento Farmacêutico: documentação detalhada que inclui justificativa da formulação, processo de fabricação, controles de qualidade e estudos de estabilidade.
Dossiê Toxicológico: dados de estudos pré-clínicos que demonstrem a segurança do IFA em doses relevantes para humanos.
b. Aprovação Ética e Regulatória
Após o desenvolvimento, as formulações farmacêuticas precisam ser aprovadas pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), juntamente com a submissão do protocolo de pesquisa clínica para aprovação ética, garantindo a proteção dos direitos e da segurança dos voluntários. Além disso, é necessária a submissão do pedido de autorização para o início dos ensaios clínicos à ANVISA, e, no caso da FDA e da EMA, o IND (Investigational New Drug) ou equivalente.
c. Monitoramento e Relatórios
Farmacovigilância: Monitoramento contínuo de eventos adversos durante os ensaios clínicos.
Relatórios Periódicos: Submissão de relatórios de segurança e progresso às autoridades regulatórias.
7. Considerações Adicionais
Também são de grande relevância os estudos que garantem a escalabilidade do desenvolvimento, visando um processo que possa ser expandido para produção em larga escala, mantendo a qualidade e a consistência do produto. Igualmente importante é a necessidade de solicitar o pedido de patentes, com o objetivo de proteger a propriedade intelectual da formulação e do processo de fabricação, quando aplicável.
Formulações para as terapias avançadas
Nos últimos anos, com os avanços da ciência básica translacional e da pesquisa clínica, foi possível desenvolver novas terapias para doenças genéticas e raras que revolucionaram a medicina, permitindo a cura de pacientes com doenças anteriormente incuráveis. Um dos grandes desafios encontrados no desenvolvimento desses medicamentos - além dos seus excessivos custos - foi a necessidade de desenvolver novas formulações altamente complexas. O desenvolvimento de formulações para terapias avançadas, como oligonucleotídeos, RNA interferente (iRNA) e terapias gênicas, representa uma das fronteiras mais promissoras e desafiadoras da medicina moderna. Essas abordagens terapêuticas têm o potencial de revolucionar o tratamento de doenças complexas, como doenças genéticas raras, câncer e condições neurodegenerativas, entre outras. No entanto, a criação de formulações eficazes e seguras para essas terapias demandou superar uma série de desafios científicos, técnicos e regulatórios.
Necessidades das Formulações Especiais
As terapias avançadas envolvem moléculas biologicamente ativas, como ácidos nucleicos (DNA, RNA) ou vetores virais e não virais, que precisam ser entregues de forma precisa e controlada às células ou tecidos-alvo. Essas moléculas são frequentemente grandes, carregadas negativamente e altamente sensíveis à degradação enzimática, o que exige formulações especiais para garantir sua estabilidade, biodistribuição e eficácia. As principais necessidades incluem:
Proteção contra Degradação: oligonucleotídeos e iRNA são suscetíveis à degradação por nucleases presentes no plasma sanguíneo e nos tecidos. Portanto, as formulações devem incorporar estratégias para proteger essas moléculas, como o uso de modificações químicas ou encapsulamento em nanopartículas.
Entrega Específica ao Alvo: a entrega eficiente ao tecido ou célula-alvo é crucial para maximizar a eficácia terapêutica e minimizar efeitos colaterais. Isso pode ser alcançado por meio de sistemas de entrega direcionados, como lipossomos, nanopartículas poliméricas ou vetores virais modificados.
Superação de Barreiras Biológicas: muitas terapias avançadas precisam atravessar barreiras biológicas, como a membrana celular ou a barreira hematoencefálica, para atingir seu local de ação. Formulações que facilitam a internalização celular ou a penetração em tecidos específicos são essenciais, embora desafiadoras.
Redução de Imunogenicidade: vetores virais e certas nanopartículas podem desencadear respostas imunes indesejadas. Portanto, é necessário desenvolver formulações que minimizem a imunogenicidade e garantam a segurança do paciente.
Desafios no desenvolvimento de formulações para terapias virais avançadas
O desenvolvimento de formulações para terapias avançadas enfrenta uma série de desafios complexos, que vão desde questões técnicas até aspectos regulatórios e de escalabilidade:
Complexidade das Moléculas Terapêuticas: Oligonucleotídeos, iRNA e terapias gênicas são moléculas grandes e estruturalmente complexas, o que dificulta sua estabilização e entrega eficiente. Além disso, sua produção em larga escala requer processos de fabricação altamente controlados e dispendiosos.
Limitações dos Sistemas de Entrega: A maioria dos sistemas de entrega atuais ainda não é ideal em termos de eficiência, especificidade e segurança. Por exemplo, nanopartículas podem se acumular em órgãos não-alvo, como fígado e baço, reduzindo sua eficácia terapêutica e aumentando o risco de toxicidade.
Escalabilidade e Fabricação: A produção de formulações para terapias avançadas em escala industrial é um desafio significativo, especialmente no caso de terapias gênicas que utilizam vetores virais. A falta de processos padronizados e a necessidade de condições de fabricação altamente controladas aumentam demasiadamente os custos e o tempo de desenvolvimento do medicamento.
Regulamentação e Segurança: As agências regulatórias exigem dados robustos sobre a segurança, eficácia e qualidade das formulações antes de aprovar seu uso clínico. Isso inclui estudos detalhados de toxicidade, imunogenicidade e estabilidade, o que pode prolongar o tempo de desenvolvimento.
Custos elevados: o desenvolvimento e a produção de formulações para terapias avançadas são extremamente caros, o que pode limitar o acesso dos pacientes a esses tratamentos inovadores. A redução de custos sem comprometer a qualidade é um desafio contínuo.
Apesar dos desafios, avanços significativos têm sido feitos no campo das formulações para terapias avançadas. Novas tecnologias, como nanopartículas inteligentes, vetores virais de próxima geração e sistemas de entrega baseados em CRISPR, estão em desenvolvimento para melhorar a precisão e a eficácia dessas terapias. Além disso, a colaboração entre academia, indústria e agências regulatórias é essencial para acelerar a tradução dessas inovações para a clínica.
Considerações finais
A transição dos estudos pré-clínicos para os ensaios clínicos de Fase I no Brasil, especialmente no desenvolvimento de formulações farmacêuticas, constitui um dos principais desafios para a consolidação da inovação terapêutica no país. Essa etapa crítica demanda uma abordagem integrada e multidisciplinar, envolvendo ciências farmacêuticas, biologia molecular, ciência dos materiais e engenharia de processos, sempre orientada pela segurança e pela conformidade regulatória. Superar esses obstáculos é essencial para viabilizar a inovação radical em saúde, incluindo o avanço das terapias avançadas e de uma medicina mais personalizada e eficaz.
Contudo, o Brasil ainda se encontra em estágio inicial nesse campo estratégico. É urgente a formulação de políticas públicas e estratégias de fomento que priorizem a criação de centros especializados em formulações farmacêuticas, além de fortalecer a cooperação entre academia e indústria. Também se faz necessário ampliar investimentos de longo prazo em ciência básica e aplicada, modernizar e dar suporte contínuo a instituições como a ANVISA e o INPI, e investir na formação de recursos humanos altamente qualificados, tanto no território nacional quanto por meio de capacitação no exterior.
Somente com ações coordenadas e sustentadas será possível avançar rumo à autossuficiência na produção de medicamentos e insumos farmacêuticos ativos (IFAs), consolidando o Brasil como um protagonista global na pesquisa, desenvolvimento e inovação em saúde.
Referências consultadas
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