Desafios, Custos e Futuro das Terapias Avançadas

Terapias avançadas prometem curar doenças antes incuráveis, mas enfrentam desafios como altos custos, acesso desigual e impacto nos sistemas de saúde. Nesta edição, descubra os dilemas, as desigualdades e os caminhos para tornar essa revolução um direito de todos — e não um privilégio de poucos.

Fabiana C. V. Giusti, PhD; Sara Tolouei, PhD e João B. Calixto, PhD

5/7/20258 min read

Os avanços extraordinários das pesquisas biomédicas básicas e clínicas na última década permitiram o desenvolvimento de terapias avançadas - terapia gênica, terapia celular e medicina regenerativa - causando uma revolução na medicina, transformando o tratamento de doenças antes consideradas incuráveis ou de difícil tratamento. Contudo, o acesso a essas terapias inovadoras permanece um desafio global, especialmente para populações de países de baixa renda e em desenvolvimento, assim como para nações desenvolvidas, devido aos custos exorbitantes. Essa realidade tem alimentado debates urgentes sobre sustentabilidade, equidade e os limites da inovação em saúde pública.

Novos medicamentos baseados em terapias avançadas aprovados pela FDA a partir de 2015

Os dados das tabelas 1 e 2 abaixo mostram um número expressivo de medicamentos aprovados pela FDA baseados em terapias avançadas nos últimos 10 anos. Foram 5 medicamentos baseados em terapia CAR-T e 9 medicamentos baseados em terapias gênicas e celulares. Chama a atenção o fato comum a todas as classes de medicamentos aprovados pela FDA - seus custos são muito elevados - impossíveis de serem custeados pelos pacientes ou mesmo para a maioria dos seguros e sistemas de saúde pública.

Em função do grande número de ensaios clínicos envolvendo as terapias avançadas atualmente em andamento nos principais países industrializados e, também, considerando o número de submissões de dossiês para avaliação e aprovação de novos medicamentos na FDA, espera-se para os próximos anos um crescimento ainda mais expressivo no número de novos medicamentos relacionados às terapias avançadas.

Tabela 1. Medicamentos CAR-T aprovados pela FDA.

A complexidade por trás dos custos elevados

As terapias avançadas envolvem processos tecnológicos complexos, que abrangem desde pesquisa científica de ponta até protocolos de produção altamente especializados. Muitas delas foram desenvolvidas para tratar doenças raras, em especial condições genéticas que afetam uma parcela mínima da população. Além disso, em diversos casos, são terapias personalizadas, criadas sob medida para pacientes específicos. Essas características — somadas aos investimentos bilionários em pesquisa, aos riscos de fracasso em ensaios clínicos e às exigências regulatórias rigorosas — explicam, em parte, os seus custos proibitivos.

Impactos nos sistemas de saúde e dilemas éticos

Os custos elevados das terapias avançadas pressionam demasiadamente os orçamentos públicos e privados, gerando impactos significativos nos gastos com saúde globalmente. Em países ricos, mesmo com sistemas robustos, a demanda crescente por essas terapias tem levado a dilemas éticos e financeiros: como priorizar recursos para tratamentos que beneficiam poucos pacientes, muitas vezes em detrimento de intervenções de amplo alcance populacional? Questões como justiça distributiva, critérios de elegibilidade e o risco de aprofundar desigualdades sociais tornam-se centrais no debate. Já em países pobres, a falta de infraestrutura, de expertise técnica e científica, bem como de recursos financeiros, torna o acesso a essas terapias avançadas praticamente inviável. Essa exclusão aprofunda o abismo em saúde global, relegando milhões de pessoas a tratamentos obsoletos ou à ausência de cuidados.

Caminhos para o acesso de mais pacientes às terapias avançadas

Para viabilizar o acesso equitativo das terapias avançadas a toda população, é necessário estabelecer mecanismos inovadores de financiamento, como, por exemplo, o estabelecimento de parcerias público-privadas, modelos de precificação baseados em resultados e flexibilização de patentes. Avanços na automação de processos de produção das terapias avançadas são também necessários para reduzir seus custos. Paralelamente, é necessário fortalecer sistemas de saúde mais robustos em países pobres e em desenvolvimento, investindo em capacitação técnica e infraestrutura.

Outras alternativas em discussão global envolvem:

  • Redução de custos de pesquisa e desenvolvimento:

    i) incentivos para pesquisa colaborativa e compartilhamento de dados podem reduzir custos;

    ii) uso de inteligência artificial e tecnologias inovadoras para acelerar o desenvolvimento de terapias.

  • Regulação de preços:

    i) estabelecimento de políticas de preços máximos ou negociação direta com fabricantes;

    ii) adoção de critérios de precificação baseados no valor terapêutico agregado.

  • Expansão de acesso em países em desenvolvimento:

    i) transferência de tecnologia para produção local de terapias avançadas;

    ii) subsídios internacionais e apoio de organizações como a OMS (Organização Mundial da Saúde).

  • Inovação em modelos de negócios:

    i) pagamento por desempenho, onde os fabricantes recebem apenas se o tratamento for eficaz;

    ii) planos de pagamento parcelado ou baseado em resultados a longo prazo.

Os desafios, portanto, vão muito além da ciência. A solução requer um pacto global que harmonize inovação, ética e principalmente justiça social. Sem isso, o potencial transformador das terapias avançadas permanecerá restrito a uma minoria, perpetuando as desigualdades históricas.

O Futuro das terapias avançadas

O permanente avanço das fronteiras da ciência básica translacional certamente possibilitará um futuro promissor para as terapias avançadas permitindo que elas sejam efetivas e tenham potencial para revolucionar o tratamento de uma ampla gama de doenças de grande prevalência em todo o mundo. Entre outras, acredita-se que nos próximos anos as terapias avançadas sejam capazes de tratar além das doenças raras, também o câncer, doenças degenerativas, cardiovasculares, autoimunes, hematológicas e doenças infecciosas, entre outras. No entanto, o potencial das terapias avançadas pode ir muito além dessas doenças.

Gastos com as terapias avançadas no Brasil

Infelizmente, não há dados públicos consolidados disponíveis sobre os gastos do Ministério da Saúde por intermédio do SUS com as terapias avançadas (terapia gênica, CAR-T e terapias celulares). No entanto, com base em notícias divulgadas na mídia é possível ter pelo menos uma noção da extensão desses gastos nos últimos anos.

Como é amplamente divulgado pela grande mídia, para cumprir as decisões judiciais, o Ministério da Saúde, em obediência a essas decisões judiciais disponibiliza aos pacientes medicamentos desenvolvidos a partir das terapias avançadas, especialmente para portadores de doenças genéticas raras, pacientes com câncer e outras doenças graves. Esses tratamentos envolvem gastos públicos da ordem de bilhões de reais anualmente.

Uma notícia divulgada pelo jornal Folha de São Paulo em 16 de fevereiro de 2022 revelou que até aquela data o Ministério da Saúde havia fornecido 75 entregas do medicamento Zolgensma para tratar doença infantil genética a atrofia muscular espinhal a um custo de 6,5 milhões de reais a unidade, totalizando até aquela data gastos de 715,7 milhões de reais.

O gasto com medicamentos de alto custo no Brasil já superou US$ 20 bilhões. Isto coloca o Brasil como um dos dez países que mais gastam com essa classe de medicamentos. Esses dados integram um estudo do “Institute for Healthcare Information” que congrega laboratórios farmacêuticos e empresas de biotecnologia. O Brasil aparece à frente de outros países como Índia, México e Rússia. È esperado que em 2024, a projeção é que esses gastos tenham aumentado em cerca de 90% e poderá atingir US$ 38,4 bilhões. Com isso, o Brasil alcançaria a sexta posição entre os países que mais gastam com compra de medicamentos e ultrapassaria Canadá, Espanha, Itália e Reino Unido.

Considerações finais

As terapias avançadas representam um divisor de águas na medicina moderna, oferecendo esperança de tratamento e mesmo a cura para pacientes com doenças antes intratáveis. A aprovação acelerada de medicamentos como CAR-T, terapia gênica e terapias celulares pela FDA desde 2015 — com custos que variam entre várias centenas de milhares a milhões de dólares por dose — evidencia não apenas o potencial científico, mas também os desafios econômicos e éticos intrínsecos a essa revolução científica e tecnológica. Enquanto países desenvolvidos lutam para equilibrar orçamentos públicos diante de preços exorbitantes desses medicamentos, nações de baixa e média renda, como o Brasil, enfrentam barreiras ainda mais críticas como dependência de decisões judiciais para acesso e uma infraestrutura de saúde frágil, incapaz de absorver tecnologias de ponta sem comprometer outros serviços essenciais.

Os dados revelam uma contradição central: embora essas terapias prometam salvar vidas e reduzir custos a longo prazo (como a cura de doenças crônicas), seu impacto econômico imediato sobre os sistemas de saúde é devastador. No Brasil, onde estima-se que os gastos com medicamentos de alto custo já ultrapassam dezenas de bilhões de dólares, as terapias avançadas propiciaram tanto avanços quanto riscos elevados e insustentáveis para a manutenção do SUS. A judicialização da saúde, embora garanta acesso individual a milhares de pacientes, ao mesmo tempo pressiona o SUS de forma insustentável, expondo a urgência de discutir e aprovar políticas públicas que harmonizem inovação, equidade e planejamento financeiro.

O futuro dessas terapias depende de uma transformação global. A expansão esperada das terapias avançadas para tratar doenças crônicas (como diabetes e Alzheimer e muitas outras), a personalização de tratamentos e a integração com tecnologias como CRISPR e inteligência artificial ampliarão seu alcance, mas apenas se acompanhadas de mecanismos globais de cooperação. Modelos de financiamento inovadores — como pagamento por resultados, subsídios internacionais e transferência de tecnologia — são essenciais para democratizar o acesso. Paralelamente, a regulação de preços, o investimento em produção local e o fortalecimento de sistemas de saúde em países pobres e em desenvolvimento devem ser prioridades.

Em última análise, o êxito das terapias avançadas não será medido apenas por sua eficácia clínica, mas também por sua capacidade de reduzir as desigualdades. Sem um pacto global que una governos, indústrias e sociedade civil em prol da justiça sanitária, essas inovações correrão o risco de se tornar privilégios de poucos, aprofundando as disparidades que a medicina moderna precisa contribuir para combater. O desafio é, portanto, muito claro e ao mesmo tempo difícil de ser solucionado. Como transformar avanços de tratamento revolucionários para doenças incuráveis em direitos universais, garantindo que a revolução das terapias avançadas beneficie toda a população global.

Referências consultadas

CRISPR Therapeutics. (2023). "Applications of CRISPR in Gene and Cell Therapy." Disponível em: https://www.crisprtx.com.

Daley, G. Q., et al. (2019). "The Promise and Perils of Stem Cell Therapeutics." Cell Stem Cell, 25(6), 725-729.

Gavi, the Vaccine Alliance. (2022). "Innovative Financing for Global Health." Disponível em: https://www.gavi.org.

Ginn, S. L., et al. (2018). "Gene Therapy Clinical Trials Worldwide to 2017: An Update." Journal of Gene Medicine, 20(5), e3015.

Food and Drug Administration (FDA). (2022). "Advancing Gene and Cell Therapies https://www.fda.gov.

Institute for Clinical and Economic Review (ICER). (2021). "Value Assessment Framework for Treatments and Therapies." Disponível em: https://icer.org.

Kesselheim, A. S., et al. (2018). "The High Cost of Prescription Drugs in the United States: Origins and Prospects for Reform." JAMA, 316(8), 858-871.

Mackall  CL;, Bollard MC;, Goodman N; Carr C; Gardner R; Rouce R; Sotillo E; Stoner R; Urnov FD; Wayne AS; , Park P & B. Kohn DB. Enhancing pediatric access to cell and gene therapies, Nature Medicine https://doi.org/10.1038/s41591-024-03035-1.

Moon, S., & Bermudez, J. (2016). "Innovation and Access to Medicines for Neglected Populations: Could a Treaty Address a Broken Pharmaceutical System?" PLoS Medicine, 13(9), e1002131.

National Institutes of Health (NIH). (2021). "Gene Therapy and Cell Therapy: The Future of Medicine. https://www.nih.gov.

Taryn Serman T. & Myers BN. Preparing for the Future: Emerging Technologies Shaping the Cell & Gene Therapy Landscape,2024. The Alliance for Regenerative Medicine. https://alliancerm.org/wp-content/uploads/2024/01/20240124-ARM_Horizons-White-Paper.pdf.

The emerging value of cell and gene therapy- 2024.

https://alliancerm.org/wp-content/uploads/2024/08/August-2024-Sector-Snapshot_Final_August.pdf.

World Health Organization (WHO). (2020). "Innovative Therapies for Global Health Challenges." https://www.who.int.

World Health Organization (WHO). (2020). "Access to Medicines and Health Products." Disponível em: https://www.who.int.

Tabela 2. Medicamentos produzidos por terapia gênica e celular aprovados pela FDA a partir de 2015.