Como Explicar o Extraordinário Desempenho da Coreia, China e Índia em PD&I visando o desenvolvimento de medicamentos e vacinas inovadores nas últimas 3 décadas?
Fabiana C. V. Giusti, PhD; Sara Tolouei, PhD e João B. Calixto, PhD
4/30/20259 min read
Responder a esta pergunta não é uma tarefa trivial, pois envolve diversas questões complexas que caracterizam cada um desses países. Primeiramente, é importante destacar que, entre os três países selecionados, a China e a Índia possuem sistemas políticos muito distintos do Brasil, além de terem populações cerca de 5-6 vezes maiores que o Brasil, o que dificulta qualquer comparação sem uma análise mais aprofundada. No entanto, apesar dessas diferenças significativas, todos os três países, ao contrário do Brasil, adotaram nas últimas 2-3 décadas estratégias de longo prazo bastante semelhantes que impulsionaram o avanço na inovação de medicamentos e vacinas.
Os avanços alcançados pela China, Índia e Coreia do Sul no campo da inovação farmacêutica e biotecnológica resultaram de estratégias bem coordenadas para superar desafios históricos no setor de inovação em fármacos e medicamentos. Entre essas estratégias destacam-se: i) formação de pessoal qualificado em todos os níveis educacionais; ii) políticas de Estado e de longo prazo e elevação dos investimentos em PD&I; iii) apoio às startups e incentivo a formação de fundos de investimentos privados; iv) modernização das suas agências reguladoras visando reduzir os prazos de análises dos estudos pré-clínicos, clínicos e a aprovação de novos produtos; v) estímulo às parcerias entre a academia e as indústrias; vi) adaptação ao sistema internacional de patentes.
Veja a seguir como cada país enfrentou esses desafios:
1. Investimento em Formação de Pessoal Qualificado e em PD&I
China:
1) Aumentou nas últimas duas décadas o percentual do seu PIB em investimentos em PD&I, incluindo em pesquisa básica translacional nas áreas relacionadas ao desenvolvimento de medicamentos, vacinas e biotecnologia;
2) Investiu em educação superior e programas de intercâmbio para capacitar pesquisadores em instituições de ponta no exterior, especialmente nos Estados Unidos;
3) Criou programas como o "Plano Mil Talentos" para atrair especialistas de volta ao país, oferecendo incentivos financeiros e oportunidades em instituições de pesquisa e indústrias estratégicas;
4) Estabeleceu zonas econômicas dedicadas à biotecnologia, com treinamento técnico para trabalhadores e pesquisadores;
5) Promoveu estímulo de longo prazo para startups de base tecnológica e o surgimento de capital privado para investimentos em projetos de risco nessas empresas;
6) Estimulou fortemente a parceria entre o setor acadêmico e as indústrias.
Índia:
1) Focou no fortalecimento das instituições de ensino técnico, como Institutos de Tecnologia da Índia (IITs) e Institutos Nacionais de Tecnologia (NITs);
2) Incentivou a colaboração entre a academia e a indústria por meio de programas de estágio e parcerias;
3) Criou centros de excelência em biotecnologia e na área farmacêutica, com suporte governamental para capacitar profissionais em novas tecnologias;
4) Estimulou a criação de empresas farmacêuticas com padrão de certificação equivalentes aos exigidos pela FDA.
Coreia do Sul:
1) Aumentou expressivamente, nas últimas décadas, o percentual do PIB destinado a investimentos em PD&I, com foco na pesquisa básica e translacional nas áreas de desenvolvimento de medicamentos, vacinas e biotecnologia;
2) Investiu pesadamente na educação em todos os níveis e em programas de intercâmbio internacional, capacitando pesquisadores em instituições de excelência no exterior;
3) Implementou uma abordagem integrada ao fortalecer universidades e criar programas como o "Brain Korea 21", destinados a formar líderes em pesquisa e inovação;
4) Estabeleceu parcerias estratégicas entre o setor privado, universidades e institutos de pesquisa, visando desenvolver competências específicas em biotecnologia e áreas afins no setor farmacêutico;
5) Atraiu multinacionais para criar hubs de pesquisa no país, ampliando as oportunidades de capacitação prática.
2. Modernização das Agências Reguladoras
China:
1) Reformou e modernizou sua agência reguladora, a Administração Nacional de Produtos Médicos (NMPA), para acelerar a análise e aprovação de estudos pré-clínicos e clínicos e os dossiês para registro de medicamentos inovadores e vacinas;
2) Adotou padrões internacionais de segurança e eficácia, promovendo a harmonização com práticas da FDA (EUA) e EMA (Europa);
3) Digitalizou processos para aumentar a transparência e reduzir a burocracia.
Índia:
1) Modernizou a Organização Central de Controle de Padrões de Medicamentos (CDSCO), implementando diretrizes para a revisão acelerada de medicamentos prioritários;
2) Implementou políticas mais rigorosas de controle de qualidade, especialmente após críticas internacionais relacionadas à fabricação de medicamentos genéricos;
3) Criou "zonas verdes" para acelerar a pesquisa clínica e a produção de medicamentos inovadores.
Coreia do Sul:
1) A Agência Coreana de Medicamentos e Alimentos (MFDS) adotou processos ágeis para avaliar estudos pré-clínicos e clínicos e para aprovar o registro de medicamentos inovadores, muitas vezes em parcerias público-privadas;
2) Priorizou regulamentações voltadas à biotecnologia, como terapias celulares e medicamentos biológicos;
3) Consolidou-se como referência global ao adotar práticas regulatórias pioneiras, que hoje servem como modelo para outros países asiáticos.
3. Reconhecimento de Patentes na Área Farmacêutica
China:
1) Passou por uma transição importante antes de aderir à Organização Mundial do Comércio (OMC), mas, em 2001, comprometeu-se a reconhecer patentes farmacêuticas como parte do acordo TRIPS (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights);
2) Reformou suas leis de patentes, incentivando as empresas nacionais a competir no cenário global, e atualmente a China ultrapassou os Estados Unidos em número de patentes;
3) Fomentou o registro de patentes internas e externas, oferecendo subsídios para impulsionar a inovação.
Índia:
1) Inicialmente resistiu ao reconhecimento total de patentes farmacêuticas, priorizando a produção de medicamentos genéricos. No entanto, em 2005, reformou sua Lei de Patentes para se alinhar ao TRIPS;
2) Introduziu o conceito de "patentes compulsórias" para equilibrar inovação com acessibilidade, permitindo a produção de genéricos em casos de necessidade pública;
3) Incentivou empresas locais a investir em PD&I, garantindo proteção a inovações relevantes.
Coreia do Sul:
1) Adotou um modelo pró-inovação, reconhecendo patentes desde o início de sua industrialização em biotecnologia;
2) Estimulou a criação de propriedade intelectual, oferecendo incentivos fiscais para empresas que registrassem patentes;
3) Firmou acordos bilaterais para facilitar o reconhecimento mútuo de patentes com mercados importantes, como os Estados Unidos e a União Europeia.
Dados de janeiro de 2024 do Pharmaproject® indicam que a China ocupa o segundo lugar em número de novos medicamentos em desenvolvimento, com 6.028 novas drogas sendo desenvolvidas, o que corresponde a 25,7% do total analisado entre 29 países. Os Estados Unidos aparecem em primeiro lugar, com 11.200 novas drogas em desenvolvimento (49,1% do total). A Coreia aparece em terceiro lugar, com 3.332 novos medicamentos em desenvolvimento (14,2%). O estudo também analisou a evolução da Índia, que contava com 624 novos medicamentos em desenvolvimento em 2024, embora não tenha sido informada sua posição entre os países analisados. Não há menção sobre a inovação tecnológica em produtos para saúde no Brasil neste documento.
Um estudo publicado por Nyko e colaboradores em 2024 na revista do BNDES indica que a indústria farmacêutica indiana faturou US$ 42 bilhões no ano fiscal de 2021-2022 e exportou mais da metade de seu faturamento – US$ 23,5 bilhões. Em volume, a Índia é a maior fornecedora mundial de vacinas (60%) e de medicamentos genéricos (20%). Além disso, a Índia possui o maior número de plantas farmacêuticas em conformidade com a FDA fora dos EUA e abriga mais de 3 mil empresas farmacêuticas, com mais de 10.500 fábricas. Ainda, a Índia conta com cerca de quinhentos fabricantes de IFA, que representam aproximadamente 8% da produção mundial.
Considerações finais
É possível concluir, com base no exposto acima, que apesar das grandes diferenças entre os 3 países, a Coreia, China e Índia superaram indiscutivelmente barreiras científicas, tecnológicas e regulatórias gigantescas nas últimas três décadas. Isso foi possível por meio de uma combinação de estratégias bem-sucedidas, envolvendo políticas públicas eficazes, investimentos estratégicos e cooperação entre governo, academia e indústria, incentivos à educação em todos os níveis e modernização de suas agências reguladoras. Hoje, esses 3 países estão na vanguarda da inovação farmacêutica e biotecnológica mundial, liderando pesquisas e a produção de medicamentos genéricos, biológicos, terapias avançadas e terapias gênicas e vacinas. Enquanto a China e a Coreia do Sul apostam na inovação disruptiva, a Índia continua a se consolidar como uma potência global focada na produção de medicamentos acessíveis às populações mais pobres e na produção de IFA, com sua indústria farmacêutica em crescimento contínuo a cada ano.
Fica claro, portanto, que o Brasil ainda necessita superar desafios importantes e percorrer rapidamente um longo caminho, se realmente desejar desenvolver competências internas e se capacitar cientificamente e tecnologicamente para realizar todo o ciclo de desenvolvimento de medicamentos e vacinas a fim de reduzir sua enorme dependência externa e atender sua população, conforme estabelece a Constituição Federal. O Brasil também precisa repensar o modelo de inovação adotado nas últimas décadas, que tem se concentrado essencialmente na substituição de importações, com foco em resultados de curto prazo. Esse modelo não se mostrou eficaz nas últimas décadas em nenhum outro país que tenha conseguido dominar toda a cadeia de PD&I na área da saúde e se tornar independente na produção de seus medicamentos e vacinas essenciais para o atendimento de suas populações.
O sucesso inquestionável da Coreia, China e Índia no domínio da complexa e longa cadeia de desenvolvimento de medicamentos inovadores e vacinas nas últimas três décadas, associado ao rápido crescimento das indústrias farmacêuticas e de biotecnologia desses países, impõe ao Brasil grandes desafios e a urgente necessidade de repensar seu modelo de inovação tecnológica na área de fármacos, medicamentos e vacinas. Entre muitas outras medidas, seria necessário: i) aumentar progressivamente a porcentagem do PIB destinada à pesquisa básica translacional e tecnológica nas áreas relacionadas ao desenvolvimento de produtos inovadores para a saúde humana; ii) estabelecer uma política de Estado de longo prazo para estimular a PD&I no setor farmacêutico; iii) estimular e fortalecer as parcerias entre a academia e as indústrias; iv) modernizar a ANVISA, com ênfase na ampliação do seu quadro técnico e, principalmente, na formação de recursos humanos nas áreas regulatórias e de desenvolvimento de medicamentos e vacinas, preferencialmente por meio de parcerias com agências reguladoras internacionais, além de contratação de profissionais treinados em outros países; v) estimular o treinamento de pessoal qualificado no exterior em todas as áreas relacionadas ao desenvolvimento de medicamentos e vacinas, notadamente em química medicinal, estudos pré-clínicos, estudos clínicos, aspectos regulatórios, biotecnologia, terapia celular, terapia gênica, desenvolvimento de novas formulações farmacêuticas de várias naturezas, escalonamento de produtos candidatos a medicamentos e vacinas e produção de IFA; vi) estimular e apoiar startups de base tecnológica nas diversas áreas relacionadas ao desenvolvimento de medicamentos, vacinas e biotecnologia, favorecendo a participação do capital privado por meio de fundos de investimento, entre outras iniciativas.
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