Atlas inédito revela como o cérebro se forma e evolui desde as células-tronco

AVANÇOS CIENTÍFICOS EM FOCO

Fabiana C. V. Giusti, PhD; Sara Tolouei, PhD e João B. Calixto, PhD

11/14/20253 min read

Uma coleção de artigos publicada pela Nature traça o mapa mais detalhado já obtido do desenvolvimento do cérebro de mamíferos, revelando como células-tronco se transformam em neurônios e outros tipos celulares durante as fases embrionária e pós-natal. O conjunto de cinco estudos, conduzidos por equipes dos Estados Unidos e Europa dentro do consórcio BRAIN Initiative Cell Atlas Network (BICAN), representa um marco para a neurociência: pela primeira vez, é possível acompanhar, célula por célula, os processos que constroem o cérebro humano e de outras espécies, abrindo caminho para novas abordagens sobre autismo, esquizofrenia e outras doenças neurológicas.

O desenvolvimento contínuo do córtex

Um dos trabalhos, liderado por Hongkui Zeng no Instituto Allen de Ciências do Cérebro, descreve um atlas de 568 mil células individuais do córtex visual de camundongos, desde o embrião até a vida adulta. O estudo mostra que o cérebro não se forma em etapas rígidas, mas por um processo contínuo de diversificação celular: novas classes e subtipos de neurônios surgem em diferentes momentos, especialmente após o nascimento, quando os filhotes abrem os olhos e o cérebro começa a responder à luz. O atlas identifica 714 subtipos celulares e detalha como genes e fatores epigenéticos se combinam para gerar a complexidade funcional do córtex. Essa visão de “tempo real” da diferenciação celular permitirá estudar como experiências precoces moldam circuitos neurais e podem afetar a cognição.

A linhagem celular no cérebro humano

Outro estudo, conduzido por Tomasz Nowakowski na Universidade da Califórnia em São Francisco, criou um atlas de linhagem do córtex humano a partir de tecidos fetais coletados entre 16 e 24 semanas de gestação.

Utilizando marcadores genéticos únicos (códigos de barras de DNA), os pesquisadores acompanharam como células progenitoras se dividem e se transformam em diferentes tipos de neurônios. Descobriu-se que, nas primeiras 20 semanas, predominam neurônios excitatórios que ativam a comunicação elétrica entre células, mas após esse período há uma transição para neurônios inibitórios, que regulam e equilibram a atividade cerebral. O estudo também mostrou que a formação de astrócitos e oligodendrócitos (células de suporte) é mais gradual e prolongada em humanos do que em camundongos, sugerindo que o desenvolvimento humano é mais plástico e prolongado.

Evolução e conservação das células nervosas

Um terceiro estudo, liderado por Fenna Krienen, de Princeton, comparou os interneurônios - células responsáveis pela inibição neuronal - em diferentes espécies de mamíferos

Usando técnicas de RNA de célula única em humanos, macacos, micos, ratos e em furões, os cientistas identificaram tanto semelhanças quanto inovações evolutivas. Descobriram, por exemplo, que um tipo de interneurônio antes considerado exclusivo do hipocampo dos camundongos (células ivy) expandiu-se no neocórtex dos primatas, possivelmente contribuindo para habilidades cognitivas superiores. O estudo também revelou um novo tipo abundante de interneurônio no corpo estriado de primatas - uma estrutura ligada ao controle de movimento e recompensa - inexistente em roedores.

A origem ancestral dos neurônios TAC3

Complementando esse achado, o artigo "Conservation and alteration of mammalian striatal interneurons" demonstra que os neurônios TAC3, inicialmente descritos como exclusivos de primatas, também estão presentes em outras linhagens de mamíferos, como porcos e furões.

Esses neurônios, derivados da eminência ganglionar medial durante o desenvolvimento embrionário, foram reidentificados em camundongos com características modificadas - evidência de que a evolução cerebral tende a refinar e redistribuir tipos celulares ancestrais, e não criar novos do zero.

Um mapa de referência para o futuro

Em conjunto, esses estudos inauguram uma nova era para o mapeamento cerebral. Ao integrar dados genéticos, epigenéticos e de linhagem em múltiplas espécies, o consórcio BICAN estabelece uma base de referência global sobre como o cérebro se organiza e evolui. Os resultados não apenas explicam a diversidade celular que sustenta a cognição humana, mas também oferecem ferramentas poderosas para investigar como mutações genéticas ou fatores ambientais alteram os processos de desenvolvimento, levando a transtornos neurológicos. Como destaca Zeng, “Entramos em um período empolgante da neurociência. Temos finalmente, o primeiro rascunho do atlas celular do cérebro em formação”.